As UPPs e o Estado de Direito

As Unidades de Polícia Pacificadora, surgidas no Rio de Janeiro há cerca de dois anos, são a melhor e mais criativa providência do Poder Público em matéria de segurança. Trata-se da ocupação de áreas controladas pelo tráfico por meio de força policial de caráter comunitário, mais do que apenas repressivo. As UPPs estão presentes em 13 favelas e bairros pobres do Rio, de um total de 1.006 contabilizadas pela Prefeitura carioca. São uma gota no oceano.

A primeira consequência positiva do trabalho da Polícia Militar foi impedir as frequentes guerras entre facções criminosas pelo controle dos pontos de venda de drogas, que resultavam em matanças entre os bandidos e sérios danos para os “civis”. Além disso, desapareceu a presença de criminosos ostensivamente armados nas favelas ocupadas. Cada uma das UPPs têm, em média, 150 soldados, cabos, sargentos e oficiais até a patente de capitão. Possuem armamento pesado e bons sistemas de comunicação, capazes de mobilizar reforço rápido, inclusive com a presença de socorro médico, helicópteros e blindados leves.

No entanto, a presença dessas forças policiais de ocupação não acabou com o tráfico. Tornou-o mais discreto – é verdade. Mas não acabou com ele. Os depósitos de drogas e de armas continuam nas favelas, sob silêncio dos moradores. O movimento se mudou para o asfalto, nos bairros próximos, constituindo aquilo que no mundo do crime é chamado de “estica”. Ou seja: um alongamento do braço do tráfico em casas e apartamentos alugados nas proximidades das favelas. E significou também a ampliação de outros meios de venda e entrega do produto das boca-de-fumo: disk-droga, Internet, mobilização dos consumidores de classe média para a venda direta. O crime parece estar sempre um passo à frente das ações governamentais.

Mesmo a forte presença de uma UPP na Cidade de Deus, zona oeste do Rio, foi incapaz de impedir a reação dos traficantes contra a prisão de um gerente da boca local. Um grupo de quinze homens pôs fogo em um ônibus com 25 passageiros, no dia 2 de março de 2010, dos quais 13 resultaram feridos. Os bandidos desapareceram sob as barbas da polícia. Além do mais, há importante questionamento legal a respeito da ocupação militar de áreas urbanas na segunda maior cidade do país, em plena democracia. Entre os moradores dessas regiões, as opiniões estão divididas. Muitos declaram aos jornais e emissoras de televisão que a vida melhorou, especialmente com o fim dos tiroteios diários. Outros reclamam da truculência policial, assédio contra mulheres, invasão de domicílio e agressões generalizadas. O diretor do filme “Tropa de Elite 2”, José Padilha, declarou à Folha de São Paulo que “as UPPs não acabam com a polícia corrupta”. E essa é uma questão fundamental.

Durante quanto tempo a PM vai ocupar essas comunidades carentes? Um ano? Dois anos? E o quanto esses policiais mal pagos e desprezados pela sociedade irão resistir ao poder de corrupção do tráfico de drogas? No Rio de Janeiro, um traficante de médio porte fatura um milhão de reais por semana. Mesmo com a entrada em operação das UPPs, não há nenhum sinal de que o tráfico tenha sido reduzido. Ao contrário, houve um incremento das vendas de drogas sintéticas na cidade (Ecstasy, Super K, GRB, LSD e outras) – além do aumento vertiginoso do crack. Durante anos, facções criminosas, como o Comando Vermelho, proibiram a venda de crack. Em São Paulo, o PCC baniu o consumo de crack nas cadeias, em “salve geral” do ano de 2002. Agora está liberado para vendas no varejo do Rio, mas continua impedido nas cadeias paulistas. Por que os bandidos combateram o crack? Porque ele destrói o consumidor em pouco tempo: ou tratamento ou cemitério!

Vale repetir: até agora, não há sinais de que as UPPs tenham colocado um freio no tráfico. E a experiência é tão recente e localizada, que seus efeitos não podem ser corretamente avaliados. Vamos esperar – e de forma otimista. Só não vale tapar o Sol com a peneira eleitoral.

Sobre questão do Estado de Direito, cabem indagações:

1.  O pobre-preto-e-favelado (não é um jargão preconceituoso, mas estatístico) pode ser invadido por um força militar em seu local de residência, partindo-se do princípio de que pertence a uma “classe perigosa” e a um “local perigoso”?

2.  Pode ser revistado a qualquer momento, inclusive sob ameaça armada, quando volta do trabalho para casa? Pode ter seu domicílio também revistado, sob olhar aterrorizado da mulher e dos filhos? O medo e a vergonha do cidadão têm espaço na mídia? Pode contar com assessoria jurídica de advogados e promotores?

3.  Alguém consegue imaginar um bloqueio militar na Avenida Paulista, em São Paulo, ou na Avenida Rio Branco, no Rio? Onde bancários (quem sabe banqueiros?), funcionários públicos e empresários seriam revistados dos pés à cabeça? E sob ameaça de tapas na cara?

4.  Alguém, entre vocês, leitores, consegue supor que as políticas de segurança não são, na verdade, políticas contra os supostos “perigosos” – e que isso esconde uma versão moderna da luta de classes? Nós, os ricos e abastados, podemos empurrar esses pobres para as favelas e periferias, com o direito, aplaudido pela mídia, de bater-lhes na cara? Não sei se o leitor sabe, mas a polícia bate sistematicamente na cara do pobre.

Então, parece que a discussão sobre a eficácia da ocupação das comunidades pobres por forças militares ou paramilitares é um pouco mais complexa do que se revela à primeira análise. E tomara que as pessoas mais conscientes não tirem conclusões apressadas.

Sobre Carlos Amorim

Carlos Amorim é jornalista profissional há mais de 40 anos. Começou, aos 16, como repórter do jornal A Notícia, do Rio de Janeiro. Trabalhou 19 anos nas Organizações Globo, cinco no jornal O Globo (repórter especial e editor-assistente da editoria Grande Rio) e 14 na TV Globo. Esteve no SBT, na Rede Manchete e na TV Record. Foi fundador do Jornal da Manchete; chefe de redação do Globo Repórter; editor-chefe do Jornal da Globo; editor-chefe do Jornal Hoje; editor-chefe (eventual) do Jornal Nacional; diretor-geral do Fantástico; diretor de jornalismo da Globo no Rio e em São Paulo; diretor de eventos especiais da Central Globo de Jornalismo. Foi diretor da Divisão de Programas de Jornalismo da Rede Manchete. Diretor-executivo da Rede Bandeirantes de Rádio e Televisão, onde implantou o canal de notícias Bandnews. Criador do Domingo Espetacular da TV Record. Atuou em vários programas de linha de show na Globo, Manchete e SBT. Dirigiu transmissões de carnaval e a edição do Rock In Rio 2 (1991). Escreveu, produziu e dirigiu 56 documentários de televisão. Ganhou o prêmio da crítica do Festival de Cine, Vídeo e Televisão de Roma, em 1984, com um especial sobre Elis Regina. Recebeu o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1994, na categoria Reportagem, com a melhor obra de não-ficção do ano: Comando Vermelho – A história secreta do crime organizado (Record – 1994). É autor de CV_PCC- A irmandade do crime (Record – 2004) e O Assalto ao Poder (Record – 2010). Recebeu o prêmio Simon Bolívar de Jornalismo, em 1997, na categoria Televisão (equipe), com um especial sobre a medicina em Cuba (reportagem de Florestan Fernandes Jr). Recebeu o prêmio Wladimir Herzog, na categoria Televisão (equipe), com uma série de reportagens de Fátima Souza para o Jornal da Band (“O medo na sala de aula”). Como diretor da linha de show do SBT, recebeu o prêmio Comunique-se, em 2006, com o programa Charme (Adriane Galisteu), considerado o melhor talk-show do ano. Em 2007, criou a série “9mm: São Paulo”, produzida pela Moonshot Pictures e pela FOX Latin America, vencedora do prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor série da televisão brasileira em 2008. Em 2008, foi diretor artístico e de programação das emissoras afiliadas do SBT no Paraná e diretor do SBT, em São Paulo, nos anos de 2005/06/07 (Charme, Casos de Família, Ratinho, Documenta Brasil etc). Vencedor do Prêmio Jabuti 2011, da Câmara Brasileira do Livro, com “Assalto ao Poder”. Autor de quatro obras pela Editora Record, foi finalista do certame literário três vezes. Atuou como professor convidado do curso “Negócios em Televisão e Cinema” da Fundação Getúlio Vargas no Rio e em São Paulo (2004 e 2005). A maior parte da carreira do jornalista Carlos Amorim esteve voltada para a TV, mas durante muitos anos, paralelamente, também foi ligado à mídia impressa. Foi repórter especial do Jornal da Tarde, articulista do Jornal do Brasil, colaborador da revista História Viva entre outras publicações. Atualmente, trabalha como autor, roteirista e diretor para projetos de cinema e televisão segmentada. Fonte: resumo curricular publicado pela PUC-RJ em “No Próximo Bloco – O jornalismo brasileiro na TV e na Internet”, livro organizado por Ernesto Rodrigues em 2006 e atualizado em 2008. As demais atualizações foram feitas pelo autor.
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11 respostas para As UPPs e o Estado de Direito

  1. ALFREDO T.C. GOMES disse:

    Boa noite! Bem, somente gostaria de registrar uma dúvida q me persegue: no caso da implementação dessas unidades, a força policial se sobrepõe à dos marginais sem o mínimo conflito. Ocorre q, em primeiro lugar essa passividadde gera estranheza. Em segundo lugar, se os marginais não são detidos, onde se encontram nesse exato momento? Essa política, além do viés claramente eleitoreiro – a vitória em 1o turno diz tudo – não passa de uma faxina de péssima qualidade, onde a sujeira é varrida para debaixo do tapete da vergonha. Obviamente q os moradeores das comunidades ficaram felizes com isso. Mas e quem mora sob esse tapete e convive, agora, mais do q nunca, com essa sujeira? Chamar isso de demagogia seria pouco? Um convite á reflexão. Boa noite a todos

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    • carlos amorim disse:

      Alfredo,
      De fato não há confrontos no avanço das UPPs, até porque as ações policiais são fartamente anunciadas em jornais, rádios e TVs. Os bandidos também acompanham os noticiários – é claro. Dessa maneira, conseguem se movimentar a tempo de evitar conflitos armados desnecessários. As lideranças vão para territórios aliados – e pouca droga e armas são apreendidas. Observando pelas imagens das TVs, noto que são armamento antigo e “endolação” para o varejo. Isso pode indicar uma vitória da nova política de segurança do Rio. Mas também faz lembrar a longa séria de acordos dos governantes com o crime organizado, que já vimos em outros períodos, o que é fartamente descreito nos meus livros.Nos períodos eleitorais, então, é muito comum.
      Não arrisco uma opinião definitiva, até porque essa experiência das UPPs é um tanto recente. Sempre vejo com bons olhos as tentativas de criar uma polícia comunitária, a única que vale a pena. Penso que deveria haver uma polícia comunitária, grupos de choque e intervenção e áreas investigativas mais modernas e científicas.
      No caso do Rio, como você suspeita, Alfredo, pode estar havendo algo mais.
      Um forte abraço,
      Camorim

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  2. guilherme lopes disse:

    .

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  3. Joel Paviotti disse:

    As UPPS atualmente se configuram como a maior comprovação das diferenças de tratamento entre pobres e ricos em uma sociedade dita ” Estado democrático de direito”,
    Como os autores Marxistas descrevem em seus escritos, o Estado de Direito é uma grande neblina que de forma eficaz, tenta mostrar igualdade entre as diferentes classes, o que na prática não condiz com a realidade, pois todos nós sabemos que uma ocupação policial não ocorreria em Alphaville, sendo que mesmo desse lado da cidade existem os traficantes de luxo!
    O probelma é que para atingir a cidadania plena(acho dificil) o Brasil terá de passar por longos caminhos e grandes reformas!
    Veja o exemplo dos EUA, a independencia do país aconteceu na década de 70 do século XVIII, e o país só conseguiu completar um projeto razoável de cidadania depois dos anos 60, com a luta pelos direitos civis dos negros, isso levando em conta que o país passou por uma guerra civil, e algumas reformas agrárias! Ainda acredito na expansão da cidadania brasileira dentro do Estado de Direito, mas certamente teremos que percorrer um longo caminho! Se alguém quiser mais informações sobre cidadania no Brasil, pegue o texto do sociólogo José Murilo de Caravalho,

    Agora, o sistema de trafico, é um negócio e como todo negócio dentro do capitalismo possui a capacidade de se reiventar, lembro que li no livro do Caco Barcellos, Abusado( Record, 2004) que o Marcinho VP, inventou esse sistema de estica, pela pressão policial dentro do morro! Da forma como as coisas estão, quanto mais se aumenta a pressão, mais o trafico se intensifica e se reiventa, se tornando cada vez mais dinamico! Então pergunto: Pq a policia também não se reinventa??
    É, notou o tanto de agua que ta passando por de baixo da ponte??

    Deixo aos amigos, duas dicas de leitura sobre o Estado de Direito e a segregação social com base na violência! Um é de um grande sociólogo brasileiro, o livro falar sobre os desafios para atingir a cidadania no Brasil, e o segundo é de uma Cientista Politica não tão famosa, mas que faz um retrospecto e uma analíse dos “Burgos Modernos” o isolamento dos ricos em condominios e a expressão geografica da pobreza dentro de uma cidade como São Paulo!

    CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. 3ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

    CIDADE DE MUROS: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo de CALDEIRA, Teresa Pires do Rio Senior Book Prize 2001

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  4. carlos amorim disse:

    Em “Vigiar e Punir”, o filósofo francês Michel Foucault, em 1975, fez a síntese exata da questão judiciária sob o capitalismo:
    “A Justiça insiste em demonstrar a sua dissimetria de classes”.
    É a mais cristalina verdade. Existem os códigos de leis, teoricamenrte destinados a todos, mas a aplicação da justiça recai sobre os pobres, as chamadas “classes perigosas”. Para os ricos e abastados, que podem contratar bons advogados e/ou corromper o sistema, há uma série incontável de recursos. Seus crimes passam décadas nos tribunais sem as sentenças definitivas. Enquanto isso, são “inocentes até prova em contrário”. Esta é a “presunção da inocência” prevista em nossos códigos e na Constituição. Os criminosos de alto bordo, alguns em funções públicas, ficam soltos.
    Ao populacho em geral, cadeia, varas criminais lotadas de processos, defensores públicos atolados de trabalho, prisões superlotadas. Em São Paulo, um juiz criminal mandou libertar parte da liderança do PCC porque estava presa há sete anos sem julgamento. Nas penitenciárias brasileiras, cerca de 5% da massa carcerária (total de 473 mil prisionairos) já cumpriram suas penas e continuam encarcerados. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afirma que a culpa é da burocracia e da falta de recursos. Em 2009, o STF determinou um “mutirão carcerário” para enfrentar a situação. Os resultados foram muiro abaixo do esperado, apesar de que fizeram alguma – digo alguma – justiça.
    Temos perto de meio milhão de encarcerados. Na sede do capitalismo mundial, os Estados Unidos, há perto de cinco milhões de prisioneiros. Lá as leis condenam os ricos. Um vigarista de Wall Street, que deu um desfalque de 50 bilhões de dólares na bolsa Nasdac (das empresas de tecnologia), foi condenado a 150 anos de prisão. E está preso. Aqui… bem, aqui a gente sabe como funciona.
    É nesse contexto que se enquadram as UPPs,
    com sua dissimetria de classes. Podem dar certo? Eventualmente, podem, em lugares muito específicos. Podem servir como um modelo? Dificilmente. Mas todos sabemos que o comando do crime organizado não está nas favelas.
    Abs
    Camorim

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  5. Pingback: Ocupado o QG do Comando Vermelho. Algo vai mudar? | Carlos Amorim

  6. Diana C. de Barros disse:

    Oi Tio Carlos!!
    A Rai postou no facebook a sua reportagem e depois fiquei tão curiosa que vim ver o seu blog… Adorei!! Li tudo já!! e vou já já ler seu livro… alias fiz a pesquisa no google e tá fácil achar :-p
    Tudo de bom!! Adorei!! Continua!! agora vou te acompanhando…
    Beijão!
    Diana

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  7. Thulio Cícero Guimarães Pereira disse:

    Concordo em muitas coisas com você Carlos Amorim, mas gostaria de adicionar um outro ponto de vista.
    É importante destacar que a experiência das UPP tem aproximadamente dois anos e, ao que tudo indica, ampla aceitação das comunidades onde foram instaladas, tendo sido referendada na última eleição. Não resido no Rio de Janeiro mas, pelo que tenho acompanhado, em geral, as ações do Estado tem tido por princípio a firme determinação de ocupação do território evitando ao máximo o confronto. O que difere muito da história das ações do Estado brasileiro. Mesmo agora, quando confrontado por mais de 100 atentados, a ação do Estado não enveredou pelo caminho do espetáculo de terror, torturas e assassinatos que São Paulo promoveu em 2006, sob o silêncio cúmplice da sociedade. As operações nas comunidades de Cruzeiro e no Complexo do Alemão poderiam ter sido um espetáculo de execuções sumárias e pilhas de cadáveres, que certamente contaria com o silêncio cúmplice de maioria da sociedade brasileira. Certamente ocorreram exageros no desenrolar das ações, mas o que ficou claro foi a firme determinação do Estado de retomar territórios abandonados, utilizando toda a força necessária sob o firme respaldo da lei. Negociando – sim – pois não estava ali para matar ou vingar feito um demiurgo enlouquecido como foi o caso de São Paulo.
    Seria crime de Estado se a ação tivesse sido desencadeada com base na idéia lírica de acabar com o tráfico de drogas e a corrupção. A análise objetiva indica que as organizações criminosas atuantes nas áreas existem porque são financiadas pelos consumidores de droga, e que o Estado foi quem criou tal situação ao criminalizar o comércio de determinadas substância. Só mesmo argumentos ingênuos ou de intenções criminosas podem sustentar tal arcabouço legal, quando se sabe que o consumo de determinadas substâncias é um problema de saúde pública e não de polícia. Parece-me que o objetivo do Estado, nesse caso do RJ, é retomar o controle sobre determinadas comunidades, para instituir a paz necessária para o exercício da cidadania (apesar de todas as limitações inerentes que tal conceito carrega em sociedades capitalistas). É claro que dadas as condições legais existentes, o financiamento para as organizações criminosas continuará existindo, e não vai ser a ocupação de morros e favelas que vai acabar com elas – haverá apenas um deslocamento e reorganização das estruturas. A diferença é que agora tais organizações terão que considerar novos limites em suas ações. Analisando objetivamente, acredito que a próxima ação do Estado será identificar quais lideranças aceitam esses novos limites para então determinar quais delas deverão sobreviver. A questão básica é que, se por um lado a organização criminosa prejudica a sociedade, por outro, a existência de organizações estruturadas permite ao Estado identificar interlocutores para negociar limites para a ação criminosa – pelo que sei, até o momento desse episódio nenhum ônibus foi incendiado com passageiros trancados dentro. O Estado possui os instrumentos necessários para impor limites ao explorar as contradições e fragilidades inerentes à toda organização, principalmente aquelas que tem por base a atividade econômica.
    Acredito que neste momento o Estado resolveu retomar territórios abandonados, mesmo sabendo que a pacificação implicará no desenvolvimento da organização política de tais comunidades e que demandarão recursos do orçamento público para suas necessidades.
    É importante destacar que é possível contar nos dedos os momentos da nossa história em que o Estado optou pela ação deste tipo – é uma exceção – a regra tem sido a carnificina.
    O episódio atual carrega muitos significados, entre eles cabe destacar o seguinte:
    O “[…] morro da Favella, […] entrou para a história por sua associação com a guerra de Canudos, por abrigar ex-combatentes que ali se instalaram para pressionar o Ministério da Guerra a lhes pagar os soldos” [1] devidos pelos serviços que prestaram para a jovem República. Ao que parece, esta recente batalha republicana no “morro, o da favela” [2] nos remete àquele ao sul do “[…] Arraial de Canudos” [2].
    Será que o processo de socialização da política brasileira atingiu um estágio capaz de reprogramar a máquina do Estado, conhecido pela sua capacidade de reproduzir sistematicamente incontáveis Canudos ao longo dos séculos de sua existência?
    Estou apostando nisso, mas sei que teremos que esperar – só o tempo nos dirá se estamos diante de algo que … nunca antes na história deste país….

    Referências
    [1] VALLADARES, Licia. A gênese da favela carioca. A produção anterior às ciências sociais. RBCS Vol. 15 nº 44 out 2000, p. 4; citando ZYLBERBERG, Sonia (coord.). (1992), Morro da Providência: memórias da “favella”. Rio de Janeiro, Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural (Coleção Memória das Favelas, vol.1). Apud VALADARES (2000).
    [2] CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Ediouro 2003 – Coleção Prestígio, p. 48.

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    • carlos amorim disse:

      Caro,
      desculpe a demora, mas estvive fora durante dois meses e pouco pude acmpanhar o movimento do site.
      Como pesquisador independente, sem financiadores e sem filiação partidária, procuro ouvir todas as opiniões antes de formar minha própria convicção. Recebo agradecido os seus comentários, que entram, por assim dizer, “para a moinha base de dados”. Ao refletir sobre essa matéria, vou me lembrar das suas palavras.
      Após me debruçar durante 27 anos sobre o tema da violância urbana e do crime organizado no Brasil, já me considero uma fonte nessa questão, com mais de 1.400 páginas publicadas. Mesmo assim, ainda há muito o que aprender e pensar.
      Abs
      Camorim

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