Cachoeira e o mito do “bom bicheiro”

O escândalo de corrupção envolvendo Carlinhos Cachoeira, parlamentares, empreiteiros e governantes não é nenhuma novidade. Cachoeira – ele gosta de ser chamado de “empresário de jogo e entretenimento”, como se o jogo de azar não fosse proibido no país – é apenas mais um na ciranda trágica da corrupção que assola o Patropi. Ele só confirma a longa tradição dos “banqueiros do bicho”, sempre envolvidos na compra de políticos e no desvio de dinheiro público. Além disso, o “bicho” sempre participou da eleição de representantes para seus negócios ilegais nas câmaras de vereadores e deputados, chegando à instância máxima do legislativo – o Senado Federal.

Isto ocorre desde o início do século passado. O “bicho” foi a primeira forma de crime organizado no Brasil. Ainda durante o Império, em 1873, o Barão de Drummond fundou o bairro de Vila Isabel, zona norte do Rio, onde construiu um palacete e criou o primeiro jardim zoológico da cidade. O barão gostava de animais, mas havia se metido em negócios duvidosos e passava por apertos financeiros. Manter o zoológico custava muitos contos de réis. E o aristocrata teve uma ideia genial: inventou uma loteria, baseada em rifas vendidas ao público, na qual cada animal tinha um número. A arrecadação premiava quem acertasse o número num sorteio.

Foi um sucesso tão grande que, além de sustentar o zoológico, sobrou dinheiro para resolver outros problemas do barão. Logo surgiram casas de corretagem (ou bancas) do “jogo do bicho”, com “apontadores” que trabalhavam nas ruas da capital do Império recolhendo apostas. Essa é a origem do problema. Muito tempo depois, já na República, a loteria foi considerada jogo de azar e proibida pela lei das contravenções – mas nunca chegou a ser considerada um crime punível com prisão. Bem, o resto a gente pode imaginar.

O “jogo do bicho” se tornou algo tão popular, que seus “banqueiros” vivaram figuras folclóricas no país, especialmente no Rio de Janeiro. Não eram vistos como criminosos, mas como benfeitores de comunidades inteiras. Fundaram escolas de samba, viraram mitos. Mas esse perfil não resiste a uma rápida pesquisa. O “jogo do bicho” se envolveu com o contrabando de bebidas importadas ilegalmente, com casas noturnas, prostituição e coisas mais. Cresceu à semelhança das organizações da Máfia, por meio de estruturas familiares, onde os negócios passam de pai para filho. Criaram uma comissão dirigente para contornar as disputas, dividir territórios e racionalizar as tarefas da contravenção.

No início doa anos 1980, o megatraficante colombiano Pablo Escobar resolveu que o Brasil, além de um corredor de passagem das drogas para a Europa e os Estados Unidos, poderia se tornar um grande mercado consumidor, o que de fato aconteceu. O Cartel de Medelín, maior produtor mundial de cocaína, comandado por Escobar, procurou sócios locas. E quem foram os primeiros a serem procurados? Justamente os “banqueiros do bicho”, em razão de seu elevado grau de organização, influência política e controle da polícia através de um mecanismo de corrupção que ficou conhecido como “PP” (Pagamento para a Polícia).

Mas os nossos bicheiros sempre foram muito espertos e resolveram não misturar o jogo com as drogas. No entanto, souberam prever que o tráfico seria um elemento inevitável na vida moderna. E entraram no negócio, sem entrar: destacaram um “banqueiro” de segunda linha, Toninho Turco (Antônio José Nicolau, da área de Bangu, no Rio) para criar uma estrutura independente da chamada “loteria zoológica”. Toninho Turco montou uma quadrilha de 91 pessoas (61 eram policiais ou ex-policiais) para tocar os negócios com o Cartel de Medelín. Foi assim que o Rio de Janeiro virou a sede do tráfico no país.

Seis anos mais tarde, no dia 11 de fevereiro de 1986, a “Operação Mosaico”, uma ação conjunta do Exército e da Polícia Federal, acabou com a quadrilha de Toninho Turco, que foi morto. Um de seus principais colaboradores, tenente da PM, escapou ao cerco e foi capturado pela Interpol na cidade de Lugano, na Suíça. Isso nos dá uma ideia da articulação criminosa que foi montada.

O fracasso do esquema de Toninho Turco, a falta de controle sobre a produção das drogas, as dificuldades com as rotas e a morte de Pablo Escobar levaram os “banqueiros do bicho” a cair fora do tráfico. Logo, porém, o esquema foi substituído por algo também muito rentável: o jogo eletrônico, as máquinas de vídeo pôquer, os bingos. As fortunas, que já eram imensas, só fizeram crescer ainda mais – e sem os perigos do tráfico. Jogo, vale repetir, não é crime.

Olhando dessa maneira, não é difícil entender porque esses homens, como o nosso Cachoeira, são tão poderosos e influentes.

Na foto acima do post, Carlinhos Cachoeira. Abaixo, uma das poucas imagens da “Operação Mosaico”, em 1986.

Sobre Carlos Amorim

Carlos Amorim é jornalista profissional há mais de 40 anos. Começou, aos 16, como repórter do jornal A Notícia, do Rio de Janeiro. Trabalhou 19 anos nas Organizações Globo, cinco no jornal O Globo (repórter especial e editor-assistente da editoria Grande Rio) e 14 na TV Globo. Esteve no SBT, na Rede Manchete e na TV Record. Foi fundador do Jornal da Manchete; chefe de redação do Globo Repórter; editor-chefe do Jornal da Globo; editor-chefe do Jornal Hoje; editor-chefe (eventual) do Jornal Nacional; diretor-geral do Fantástico; diretor de jornalismo da Globo no Rio e em São Paulo; diretor de eventos especiais da Central Globo de Jornalismo. Foi diretor da Divisão de Programas de Jornalismo da Rede Manchete. Diretor-executivo da Rede Bandeirantes de Rádio e Televisão, onde implantou o canal de notícias Bandnews. Criador do Domingo Espetacular da TV Record. Atuou em vários programas de linha de show na Globo, Manchete e SBT. Dirigiu transmissões de carnaval e a edição do Rock In Rio 2 (1991). Escreveu, produziu e dirigiu 56 documentários de televisão. Ganhou o prêmio da crítica do Festival de Cine, Vídeo e Televisão de Roma, em 1984, com um especial sobre Elis Regina. Recebeu o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1994, na categoria Reportagem, com a melhor obra de não-ficção do ano: Comando Vermelho – A história secreta do crime organizado (Record – 1994). É autor de CV_PCC- A irmandade do crime (Record – 2004) e O Assalto ao Poder (Record – 2010). Recebeu o prêmio Simon Bolívar de Jornalismo, em 1997, na categoria Televisão (equipe), com um especial sobre a medicina em Cuba (reportagem de Florestan Fernandes Jr). Recebeu o prêmio Wladimir Herzog, na categoria Televisão (equipe), com uma série de reportagens de Fátima Souza para o Jornal da Band (“O medo na sala de aula”). Como diretor da linha de show do SBT, recebeu o prêmio Comunique-se, em 2006, com o programa Charme (Adriane Galisteu), considerado o melhor talk-show do ano. Em 2007, criou a série “9mm: São Paulo”, produzida pela Moonshot Pictures e pela FOX Latin America, vencedora do prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor série da televisão brasileira em 2008. Em 2008, foi diretor artístico e de programação das emissoras afiliadas do SBT no Paraná e diretor do SBT, em São Paulo, nos anos de 2005/06/07 (Charme, Casos de Família, Ratinho, Documenta Brasil etc). Vencedor do Prêmio Jabuti 2011, da Câmara Brasileira do Livro, com “Assalto ao Poder”. Autor de quatro obras pela Editora Record, foi finalista do certame literário três vezes. Atuou como professor convidado do curso “Negócios em Televisão e Cinema” da Fundação Getúlio Vargas no Rio e em São Paulo (2004 e 2005). A maior parte da carreira do jornalista Carlos Amorim esteve voltada para a TV, mas durante muitos anos, paralelamente, também foi ligado à mídia impressa. Foi repórter especial do Jornal da Tarde, articulista do Jornal do Brasil, colaborador da revista História Viva entre outras publicações. Atualmente, trabalha como autor, roteirista e diretor para projetos de cinema e televisão segmentada. Fonte: resumo curricular publicado pela PUC-RJ em “No Próximo Bloco – O jornalismo brasileiro na TV e na Internet”, livro organizado por Ernesto Rodrigues em 2006 e atualizado em 2008. As demais atualizações foram feitas pelo autor.
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3 respostas para Cachoeira e o mito do “bom bicheiro”

  1. Cássio disse:

    Um problema tão importante de ser solucionado e esclarecido como o envolvimento de empresas e parlamentares com banqueiros do bicho, que como mostrado acima são bandidos muito perigosos e podereosos, deveria ser a única prioridade quando se estabeleceu a CPI de Carlinhos Cachoeira. Ao invés disso os parlamentares preferem estabelecer uma disputa partidária para ver quais dos lados (que não se diferenciam muito) consegue compremeter mais o outro em relação ao envolvimento com Cachoeira. Lamentável.

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  2. João Rodrigues disse:

    Coisas de pessoas bandidas ou metidos diretamente com a bandidagem e a pistolagem direta. Como é o caso do “nosso querido” senador e ex-presidente José Ribamar Sarney, que praticou diverso crimes de lesa pátria dentro da nossa “casa de leis” e ainda a pistolagem direta, ou seja, praticou o crime, puxou o dedo no gatilho e destruiu famílias inteiras de pessoas inocentes. É um criminoso como qualquer Fernandinho Beiramar da vida, e ainda continua solto e recebendo honras de chefe de estado.
    O que as pessoas não entendem, e que não da mais para varrer o lixo para debaixo do tapete. Lixo tem que ir para o lixo e depois todos( os Fernandinhos, os Sarneys, os Cachoeiras, Os mensaleiros, os latrocidas, traficantes e as organizações secretas que destroem esse pais), serem jogados na fornalha, se possível de aço derretido e jogados no fundo do mar…para nunca mais retornarem das profundezas!
    Isso seria o começo da redenção das civilizações e talvez da humanidade!
    Essa é a minha opinião!

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  3. Bruno Torres disse:

    Morei em Marechal Hermes nessa época, era criança, e todos respeitavam “Toninho Turco”. Estou perto de completar 36 anos, sou Professor de Geografia e compreendo que os problemas sociais urbanos do Rio de Janeiro, são agravantes de décadas e décadas atrás. Toninho Turco, Willian da Silva, O Professor, Escadinha, Orlando Jogado, Rogério Lengruber, UÊ, Marcinho VP DO Alemão, Marcinho do Dona Marta, Linho, Castor de Andrade e sua família, Fernandinho Beira-mar, assim como outros nomes, foram personalidades que seriam inevitáveis de acontecer. Li o livro Comando Vermelho, gostei, portanto, falta um bom filme relacionado a esses fatos criminosos, que o Estado deixou acontecer.

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