O confronto esperado que não vai acontecer

Artigo publicado na coluna de Luís Nassif no IG.

Quem espera um grande confronto armado entre as forças de segurança e as organizações ligadas ao tráfico de drogas, durante a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, está enganado. Governantes e bandidos têm uma longa tradição de acordos e acertos nesses períodos de grandes eventos. E isso inclui o carnaval e os festejos de Ano Novo, quando milhões de turistas estão entre nós e há grande visibilidade do Brasil no exterior. Durante a ECO92, encontro dos chefes de Estado mais importantes do mundo, para tratar da questão ambiental, no Rio de Janeiro, os índices de criminalidade caíram verticalmente.

As Forças Armadas ocuparam a Cidade Maravilhosa com 20 mil soldados, carros blindados e helicópteros. Havia tanques de guerra na subida de favelas populosas como a Rocinha, o Vidigal e o Complexo do Alemão, antes territórios de violentas disputas entre quadrilha do tráfico. Naqueles dias, de 3 a 14 de junho de 1992, os canhões estavam apontados para o cenário das batalhas do crime, as pessoas dirigiam seus carros com os vidros abertos; ninguém tinha medo de parar nos sinais de trânsito; havia ambulâncias militares espalhadas em pontos estratégicos, assim como centros de comunicação; soldados armados com fuzis FAL-7.62 em todos os lugares. No mar, fragatas da Marinha, armadas com mísseis, patrulhavam a praia de Copacabana, onde estavam hospedados os líderes mundiais. Uma “força de intervenção rápida” ficou estacionada na Base Aérea do Galeão, bem ao lado do aeroporto internacional – e no coração das áreas confrontadas pelo Comando Vermelho (CV), o Terceiro Comando (TC ou 3C) e a ADA (a organização criminosa chamada de Amigos dos Amigos, nomenclatura que segue a longa tradição da Máfia).

O único incidente entre os militares e os traficantes ocorreu numa favela que fica nos fundos do Batalhão dos Fuzileiros Navais, nas proximidades da Ilha do Fundão e das instalações da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Um pelotão de 18 homens dos nossos “marines”, equipado com uniforme completo de combate, deu de cara com um “bonde” dos traficantes. Os bandidos transportavam drogas para seus locais de esconderijo na favela. O primeiro dos bandidos na fila disparou uma pistola automática 9mm contra um cabo dos fuzileiros, armado com uma carabina Winchester, semi-automática, calibre 12. A arma pode derrubar um elefante com um único tiro. Mas o nosso bem treinado “marine” não revidou, porque um tiro da sua arma poderia provocar um enorme estrago entre os “civis” que transitavam na área. Além do mais, o militar estava usando colete à prova de balas e um capacete Klevar, invulnerável, o mesmo que usam os Marines de verdade nas batalhas no Iraque e no Afeganistão. Essa foi a única confrontação ocorrida durante a ECO92.

Nos Jogos Panamericanos de 2007, também no Rio, os maiores crimes foram atribuídos ao superfaturamento de obras públicas, como a construção de estádios e outras facilidades para a competição – mais do que aos episódios de criminalidade. De novo, assistimos ao incremento da segurança. À queda dos índices de violência. Turistas e torcedores de todos os matizes caminhavam pelas ruas do Rio sem as ameaças costumeiras. Por que? Porque valia o acordo de sempre: a polícia não entra nas favelas e nas comunidades pobres controladas pelo tráfico. Em troca, as organizações criminosas combatem o crime avulso, aquele do sinal de trânsito, na origem. O criminoso avulso é reprimido dentro de casa, enquanto que a autoridade pública se afasta dos grupos organizados. Só pelo tempo em que dura o evento internacional, com cobertura da mídia mundial. Imediatamente após a retirada dos “estrangeiros”, voltamos a viver a ciranda da violência e do conflito armado.

Para os bandidos, a principal conseqüência do incremento da segurança é o aumento do preço do grama das drogas, tanto a cocaína, quanto a maconha ou as drogas sintéticas, entre elas o ecstasy, o LSD, a Super K e outros combinados químicos que agitam as baladas nas grandes cidades. A pressão das forças de segurança na entrada das bocas-de-fumo provoca a elevação dos preços e o desenvolvimento de outras formas de entrega das drogas, combinada por telefones celulares ou pela internet. Disto surgiu o Disk-Drogas, no mundo virtual, muito mais eficiente do que a compra direta nas favelas. E – pior – envolveu a juventude de classe média alta, que domina o mundo dos computadores. Cada vez mais os jovens ricos se envolvem com o tráfico. Justamente porque tem acesso aos meios eletrônicos. Para os governantes, a redução da violência tem saldo político: realizamos eventos de escala global sem maiores problemas. Esta foi – inclusive – uma das argumentações do Rio para vencer a escolha para sediar os Jogos Olímpicos de 2016.

Neste momento, quando nos colocamos diante de grandes datas internacionais do esporte, quando o Brasil se posiciona entre os países mais qualificados para acolher acontecimentos de grande porte, o problema da negociação entre governantes e o crime assume proporções impressionantes. Como vamos garantir a segurança desses eventos? Só através de negociação com as forças armadas do submundo. Como assegurar que os milhares de visitantes estrangeiros tenham uma passagem pacífica pelas nossas maiores cidades? Por meio de um acordo. E que acordo é esse? Simples: repetir as experiências anteriores. A polícia não entra nas favelas e bairros controlados pelo tráfico – e as organizações criminosas não permitem que o crime avulso se apresente aos passaportes estrangeiros, por meio do convencimento ou da violência.

Quando ocorreram os famosos “arrastões” na praia de Ipanema, os chefes do tráfico puniram os menores envolvidos. Em Vigário Geral, os homens do CV deram um tiro de 38 na mão dos meninos envolvidos na ação contra os banhistas. Eles foram flagrados pela TV-Globo gritando: “Chegou, chegou o Bonde do Mal de Vigário Geral”. Foram punidos. Na favela de Parada de Lucas, tiveram as mãos quebradas com golpes de marretas ordenados pelo traficante Robertinho de Lucas. E as sentenças foram executadas em público – e com a celeridade da Lei do Cão.

Esses acordos nunca escritos, mas negociados ao pé do ouvido por políticos, cabos eleitorais e até por enviados da própria polícia, servem também nos períodos eleitorais, quando os candidatos precisam subir os morros ou pisar no barro das periferias. Quando se candidatou e venceu as eleições para o governo fluminense, em 1986, Wellington Moreira Franco (PMDB) fez campanha nas favelas. Antes, seus cabos eleitorais negociaram com o Comando Vermelho, para obter a permissão de chegar perto dos pobres. A primeira experiência foi no morro do Juramento, nos subúrbios do Rio, controlado pelo traficante José Carlos dos Reis Encina, o Escadinha, um dos fundadores do CV. Moreira Franco, mais tarde, comentou comigo: “havia gente armada para todo lado” (para detalhes, ver “Comando Vermelho – A história secreta do crime organizado”, de minha autoria – Record, 1994).

Depois de se eleger numa disputa apertada, Moreira Franco jogou duro contra os criminosos: construiu o presídio de Bangu Um, a primeira prisão de segurança do país, e encarcerou toda a liderança do tráfico. Um dos seus principais organizadores de rua durante a campanha, Jorge Miguel, o Miguelão, foi morto a tiros. O governador sofreu dois atentados a bala. Alguma coisa deu errado depois da eleição.

Exemplo mais recente têm data em maio de 2006: no auge dos ataques do Primeiro Comando da Capital, o PCC, contra a autoridade pública em São Paulo, que resultaram em 275 atentados a tiros e bombas, resultando na morte de mais de uma centena de pessoas, o governo paulista decidiu negociar com a organização criminosa. Um avião do governo de Cláudio Lembo, que substituía Geraldo Alkimim (então candidato à presidência), deixou a capital com destino a Presidente Bernardes. À bordo estavam um delegado do Deic, um coronel da PM (comandante do policiamento do interior) e uma advogada. Foram conversar com o preso Marcos Herbas Camacho, o Marcola, apontado pela polícia como o “poderoso chefão” do PCC. Queriam o fim da violência em troca de melhorias nas condições carcerárias. Os negociadores chegaram a levar dois telefones celulares para Marcola, através dos quais pudesse se comunicar com os seus companheiros em outros presídios. Ele se recusou. Mesmo depois do encontro, que durou horas, a campanha terrorista do PCC continuou. (Para detalhes, ver “O assalto ao poder”, também de minha autoria, a ser publicado em maio pela Editora Record.)

No caso atual do Rio de Janeiro, frente à Copa do Mundo (o encerramento deve ser no Maracanã) e às Olimpíadas, passando por uma eleição presidencial e para governador, há um elemento complicador. Hoje há sete forças armadas envolvidas na guerra civil carioca: o CV, o TC, a ADA, as Milícias (formadas por policiais, ex-policiais e bombeiros), além das polícias civil, militar e federal. Cada uma delas tem interesse distinto no conflito. As polícias mal se falam entre si, desenvolvendo operações paralelas. Os bandidos não conversam – eles preferem se matar mesmo, para resolver questões territoriais. Assim, nesse quadro tão complexo, os negociadores vão ter que ser muito hábeis. Mas a confrontação armada durante os eventos é improvável, quase impossível. Amém.

*Carlos Amorim é jornalista e escritor, autor de “Comando Vermelho –  A história secreta do crime organizado”.

Também autor de “CV_PCC – A Irmandade do crime”. E de “Assalto ao Poder – O crime organizado”. Uma trilogia sobre o crime organizado  e a violência urbana que desafia o Brasil há mais de 25 anos.

Sobre Carlos Amorim

Carlos Amorim é jornalista profissional há mais de 40 anos. Começou, aos 16, como repórter do jornal A Notícia, do Rio de Janeiro. Trabalhou 19 anos nas Organizações Globo, cinco no jornal O Globo (repórter especial e editor-assistente da editoria Grande Rio) e 14 na TV Globo. Esteve no SBT, na Rede Manchete e na TV Record. Foi fundador do Jornal da Manchete; chefe de redação do Globo Repórter; editor-chefe do Jornal da Globo; editor-chefe do Jornal Hoje; editor-chefe (eventual) do Jornal Nacional; diretor-geral do Fantástico; diretor de jornalismo da Globo no Rio e em São Paulo; diretor de eventos especiais da Central Globo de Jornalismo. Foi diretor da Divisão de Programas de Jornalismo da Rede Manchete. Diretor-executivo da Rede Bandeirantes de Rádio e Televisão, onde implantou o canal de notícias Bandnews. Criador do Domingo Espetacular da TV Record. Atuou em vários programas de linha de show na Globo, Manchete e SBT. Dirigiu transmissões de carnaval e a edição do Rock In Rio 2 (1991). Escreveu, produziu e dirigiu 56 documentários de televisão. Ganhou o prêmio da crítica do Festival de Cine, Vídeo e Televisão de Roma, em 1984, com um especial sobre Elis Regina. Recebeu o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1994, na categoria Reportagem, com a melhor obra de não-ficção do ano: Comando Vermelho – A história secreta do crime organizado (Record – 1994). É autor de CV_PCC- A irmandade do crime (Record – 2004) e O Assalto ao Poder (Record – 2010). Recebeu o prêmio Simon Bolívar de Jornalismo, em 1997, na categoria Televisão (equipe), com um especial sobre a medicina em Cuba (reportagem de Florestan Fernandes Jr). Recebeu o prêmio Wladimir Herzog, na categoria Televisão (equipe), com uma série de reportagens de Fátima Souza para o Jornal da Band (“O medo na sala de aula”). Como diretor da linha de show do SBT, recebeu o prêmio Comunique-se, em 2006, com o programa Charme (Adriane Galisteu), considerado o melhor talk-show do ano. Em 2007, criou a série “9mm: São Paulo”, produzida pela Moonshot Pictures e pela FOX Latin America, vencedora do prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor série da televisão brasileira em 2008. Em 2008, foi diretor artístico e de programação das emissoras afiliadas do SBT no Paraná e diretor do SBT, em São Paulo, nos anos de 2005/06/07 (Charme, Casos de Família, Ratinho, Documenta Brasil etc). Vencedor do Prêmio Jabuti 2011, da Câmara Brasileira do Livro, com “Assalto ao Poder”. Autor de quatro obras pela Editora Record, foi finalista do certame literário três vezes. Atuou como professor convidado do curso “Negócios em Televisão e Cinema” da Fundação Getúlio Vargas no Rio e em São Paulo (2004 e 2005). A maior parte da carreira do jornalista Carlos Amorim esteve voltada para a TV, mas durante muitos anos, paralelamente, também foi ligado à mídia impressa. Foi repórter especial do Jornal da Tarde, articulista do Jornal do Brasil, colaborador da revista História Viva entre outras publicações. Atualmente, trabalha como autor, roteirista e diretor para projetos de cinema e televisão segmentada. Fonte: resumo curricular publicado pela PUC-RJ em “No Próximo Bloco – O jornalismo brasileiro na TV e na Internet”, livro organizado por Ernesto Rodrigues em 2006 e atualizado em 2008. As demais atualizações foram feitas pelo autor.
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Uma resposta para O confronto esperado que não vai acontecer

  1. Joel Paviotti disse:

    Todos sabemos que o crime organizado é um Estado paralelo, que se insere nas brechas deixadas pelo próprio Estado Brasileiro!
    O CV por exemplo, entra nas brechas da lei, e o crime contagia! O Rio de Janeiro é um grande barril de pólvora, onde os Estados do Terceiro Comando, Comando Vermelho e Das Milicias se confrontam, deixando o Estado brasileiro como refém!

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