O desaparecimento de um servente de pedreiro na favela da Rocinha, após ser detido por soldados da PM envolvidos numa operação contra o tráfico, levanta novamente a questão da legitimidade das Unidades de Polícia Pacificadora, as famosas UPPs. Implantadas há mais ou menos cinco anos – saudadas pela mídia apressada como solução milagrosa para a violência no Rio -, agora são responsáveis pela “pacificação” de 33 favelas cariocas, num universo onde há mais de mil. Além do desaparecimento do Amarildo, o morador da Rocinha, há centenas de denúncias de violação dos direitos humanos nas “áreas retomadas” pelo Estado. E continua a chuva de balas perdidas que sempre encontra um morador. Até agora, dezenas de soldados da PM e do Exército (o número, se não me falha a memória, é 82) foram afastados de suas funções por corrupção e violência desmedida.
E qual é o balanço das UPPs? Ao que se saiba, o resultado é duvidoso. Após apoio inicial das populações “pacificadas”, já exaustas de tantas matanças e tiroteios nossos de cada dia, vieram os protestos. Não houve redução significativa nos índices gerais de violência, pelo menos no que diz respeito à atuação das UPPs. Os números do tráfico só aumentaram no período. As lideranças presas foram rapidamente substituídas por gente mais jovem e mais perigosa. Apesar da novela da Glória Perez, que mostrava um idílico Complexo do Alemão, a realidade é mais dramática. Uma “marcha pela paz”, no mesmo complexo de favelas, foi impedida a tiros de fuzis e metralhadoras disparados pelos traficantes. E o próprio secretário Beltrame estava presente.
O governador Sérgio Cabral, reeleito em parte pelos primeiros resultados das UPPs, agora vive sitiado por manifestações de protesto. E o próprio ritmo de ocupação policial e militar das favelas foi reduzido: é uma operação muito cara (os números nunca foram revelados) e resulta em quase nada. Na verdade, o que aumenta é a truculência policial. As UPPs se tornaram pequenos estados de sítio sobre comunidades carentes e indefesas. Em muitos casos, a polícia continuou a encobrir o tráfico, em troca de propinas milionárias. Há quem diga que policiais assumiram a gerência dos negócios da droga. Até mesmo um oficial superior da PM, comandante de batalhão, acabou preso. Um tenente do Exército foi afastado depois de roubar dois aparelhos de ar condicionado de um morador do Alemão.
Para ajudar na reflexão a respeito do tema, republico, a seguir, um post de 2010, “As UPPs e o Estado de Direito”. Nele, apesar de que estava otimista quanto à iniciativa do governo do Rio, levantava questões ligadas ao cumprimento das leis e do respeito à cidadania. Os exemplos citados – é claro – estão superados pelo passar do tempo. Mas o pano de fundo do desrespeito ao morador continua valendo. Confira:
“As UPPs e o Estado de Direito
As Unidades de Polícia Pacificadora, surgidas no Rio de Janeiro há cerca de dois anos (agora já são quase cinco), são a melhor e mais criativa providência do Poder Público em matéria de segurança. Trata-se da ocupação de áreas controladas pelo tráfico por meio de força policial de caráter (supostamente) comunitário, mais do que apenas repressivo. As UPPs estão presentes em 13 favelas e bairros pobres do Rio (agora são 33), de um total de 1.006 contabilizadas pela Prefeitura carioca. Uma gota no oceano.
A primeira consequência positiva do trabalho da Polícia Militar foi impedir as frequentes guerras entre facções criminosas pelo controle dos pontos de venda de drogas, que resultavam em matanças entre os bandidos e sérios danos para os “civis”. Além disso, desapareceu a presença de criminosos ostensivamente armados nas favelas ocupadas. Cada uma das UPPs têm, em média, 150 soldados, cabos, sargentos e oficiais até a patente de capitão. Possui armamento pesado e bons sistemas de comunicação, capazes de mobilizar reforço rápido, inclusive com a presença de socorro médico, helicópteros e blindados leves.
No entanto, a presença dessas forças policiais de ocupação não acabou com o tráfico. Tornou-o mais discreto – é verdade. Mas não acabou com ele. Os depósitos de drogas e de armas continuam nas favelas, sob silêncio dos moradores. O movimento se mudou para o asfalto, nos bairros próximos, constituindo aquilo que no mundo do crime é chamado de “estica”. Ou seja: um alongamento do braço do tráfico em casas e apartamentos alugados nas proximidades das favelas. E significou também a ampliação de outros meios de venda e entrega do produto das bocas-de-fumo: disk-droga, Internet, mobilização dos consumidores de classe média para a venda direta etc. O crime parece estar sempre um passo à frente das ações governamentais.
Mesmo a forte presença de uma UPP na Cidade de Deus, zona oeste do Rio, foi incapaz de impedir a reação dos traficantes contra a prisão de um gerente da boca local. Um grupo de quinze homens pôs fogo em um ônibus com 25 passageiros, no dia 2 de março de 2010, dos quais 13 resultaram feridos. Os bandidos desapareceram sob as barbas da polícia. Além do mais, há importante questionamento legal a respeito da ocupação militar de áreas urbanas na segunda maior cidade do país, em plena democracia. Entre os moradores dessas regiões, as opiniões estão divididas. Muitos declaram aos jornais e emissoras de televisão que a vida melhorou, especialmente com o fim dos tiroteios diários. Outros reclamam da truculência policial, assédio contra mulheres, invasão de domicílio e agressões generalizadas. O diretor do filme “Tropa de Elite 2”, José Padilha, declarou à Folha de São Paulo que “as UPPs não acabam com a polícia corrupta”. E essa é uma questão fundamental.
Durante quanto tempo a PM vai ocupar essas comunidades carentes? Um ano? Dois anos? E o quanto esses policiais mal pagos e desprezados pela sociedade irão resistir ao poder de corrupção do tráfico de drogas? No Rio de Janeiro, um traficante de médio porte fatura um milhão de reais por semana. Mesmo com a entrada em operação das UPPs, não há nenhum sinal de que o tráfico tenha sido reduzido. Ao contrário, houve um incremento das vendas de drogas sintéticas na cidade (Ecstasy, Super K, GRB, LSD e outras) – além do aumento vertiginoso do crack. Durante anos, facções criminosas, como o Comando Vermelho, proibiram a venda de crack. Em São Paulo, o PCC baniu o consumo de crack nas cadeias, em “salve geral” do ano de 2002. Agora está liberado para vendas no varejo do Rio, mas continua impedido nas cadeias paulistas (aparentemente, essa proibição foi revogada em 2013). Por que os bandidos combateram o crack? Porque ele destrói o consumidor em pouco tempo: ou tratamento ou cemitério!
Vale repetir: até agora, não há sinais de que as UPPs tenham colocado um freio no tráfico. E a experiência é tão recente e localizada, que seus efeitos não podem ser corretamente avaliados. Vamos esperar – e de forma otimista. Só não vale tapar o Sol com a peneira eleitoral.
Sobre questão do Estado de Direito, cabem indagações:
O pobre-preto-e-favelado (não é um jargão preconceituoso, mas estatístico) pode ser invadido por uma força militar em seu local de residência, partindo-se do princípio de que pertence a uma “classe perigosa” e a um “local perigoso”?
Pode ser revistado a qualquer momento, inclusive sob ameaça armada, quando volta do trabalho para casa? Pode ter seu domicílio também revistado, sob olhar aterrorizado da mulher e dos filhos? O medo e a vergonha do cidadão têm espaço na mídia? Pode contar com assessoria jurídica de advogados e promotores?
Alguém consegue imaginar um bloqueio militar na Avenida Paulista, em São Paulo, ou na Avenida Rio Branco, no Rio? Onde bancários (quem sabe banqueiros?), funcionários públicos e empresários seriam revistados dos pés à cabeça? E sob ameaça de tapas na cara?
Alguém, entre vocês, leitores, consegue supor que as políticas de segurança não são, na verdade, políticas contra os supostos “perigosos” – e que isso esconde uma versão moderna da luta de classes? Nós, os ricos e abastados, podemos empurrar esses pobres para as favelas e periferias, com o direito, aplaudido pela mídia, de bater-lhes na cara? Não sei se o leitor sabe, mas a polícia bate sistematicamente na cara do pobre.
Então, parece que a discussão sobre a eficácia da ocupação das comunidades pobres por forças militares ou paramilitares é um pouco mais complexa do que se revela à primeira análise. E tomara que as pessoas mais conscientes não tirem conclusões apressadas”.