Acompanhe, a seguir, os trechos mais importantes da entrevista de Carlos Amorim à jornalista Cláudia Lamego, do Grupo Editorial Record:
Cláudia – O livro abre com uma descrição detalhada da região do Araguaia, cenário da luta armada e da derrota fragorosa dos militantes do PCdoB. A riqueza de informações e o painel que você traça não apenas da região, mas de um tempo de lutas no país, lembra a estrutura escolhida por Euclides da Cunha para contar, em Os sertões, a história da Guerra de Canudos. Esse clássico foi uma inspiração para você?
Amorim – Evidentemente, Euclides da Cunha e sua obra monumental são sempre uma fonte de inspiração. Mas longe de mim qualquer comparação com “Os Sertões”. A estrutura do meu livro de fato se parece com a estrutura da narrativa de Canudos. Porque Euclides era um repórter e não um literato. E um repórter escreve a partir daquilo que vê, ouve e estuda. A minha descrição do conflito armado no Araguaia segue esse mesmo roteiro pragmático. Escrevi com simplicidade e sem preocupações literárias. Foi um texto intuitivo, em alguns momentos impregnado de emoção. Como a maior parte da minha formação profissional está ligada à televisão, a história acabou ganhando involuntariamente uma narrativa cinematográfica. E isso facilita a compreensão para leitores que nunca ouviram falar da guerrilha.
Claudia – Depois de contar a história do crime organizado (Comando Vermelho, PCC, Assalto ao Poder), por que decidiu escrever sobre a Guerrilha do Araguaia?
Amorim – Depois da trilogia sobre violência urbana e crime organizado, fiquei com a impressão de que tinha esgotado o assunto. Pelo menos do ponto de vista do meu interesse como jornalista e pesquisador. Mas queria continuar a escrever sobre eventos da história contemporânea do país. A guerrilha no Araguaia logo me veio à cabeça, até porque tenho sonhos recorrentes com a floresta amazônica, que conheci de perto. Então, lentamente, me rendi ao tema da luta armada no Araguaia. Tenho pesquisado essa matéria há mais de dez anos, reunindo informações, publicações, lendo relatórios oficiais (alguns secretos até hoje), ouvindo pessoas envolvidas. No início de 2012, ofereci o projeto à Editora Record, a minha casa editorial deste 1993. E passei dois anos gravando entrevistas e escrevendo, compilando imagens e fotos, ouvindo relatos inéditos. Não existe uma “história oficial” sobre o Araguaia. Essa foi a maior dificuldade – e, ao mesmo tempo -, o melhor desafio.
Cláudia – O Araguaia já era uma região conflagrada quando os militantes do PCdoB a escolheram para fazer a guerrilha. Os conflitos que opunham posseiros, índios e garimpeiros aos novos fazendeiros, políticos e investidores eram vistos pelos guerrilheiros como um motivo para a conquista do povo do lugar, já oprimido. Mas, em seu livro, você mostra que não deu certo.
Amorim – A chamada área estratégica para implantação da guerrilha rural foi muito bem escolhida. A bacia do Rio Araguaia, entre três estados (Goiás, Pará e Maranhão), era uma região de conflitos permanentes. E era um fim de mundo distante, onde o Estado moderno simplesmente não estava presente. Com densa cobertura de selva, o Araguaia tinha saída para cidades ao longo da rodovia Belém-Brasília e uma área de recuo em direção ao Alto Xingu, ao norte e ao sul. A guerrilha operava em 7.200 quilômetros quadrados de florestas e grandes rios, com flora e fauna abundantes. Não era difícil sobreviver só da floresta, mas era extremamente difícil para o governo militar entrar ali com grandes tropas. Só que a zona guerrilheira era um labirinto verde sem habitantes. Em toda aquela área não havia nem 20 mil moradores. Na verdade, não existia uma “massa popular” para ser conquistada pela ação dos comunistas. Na estratégia do PCdoB, aquilo se transformaria numa zona liberada para a operação guerrilheira, atraindo os militares para uma armadilha, como de fato se deu inicialmente. A luta política dos comunistas seria travada em combinação com grandes centros urbanos do país. Ou seja: luta armada no campo e luta política nas cidades. Não deu certo. O Brasil não ficou sabendo que havia uma guerrilha na Amazônia. Eles ficaram isolados e foram destruídos.
Cláudia – Outro erro de visão do PCdoB apontado no livro: o Brasil era um país capitalista e a guerra camponesa só tinha se mostrado frutífera em países onde a atividade agrícola primitiva constituía a base da economia e as relações de trabalho eram quase escravagistas. Alguns militantes, muito jovens na época da luta armada, já fizeram uma revisão crítica de suas posições. Mas, no caso específico do PCdoB, a guerrilha foi uma opção de dirigentes experientes, na luta política desde a década de 40. Havia uma espécie de cegueira em relação ao quadro social, econômico e político do país?
Amorim – A luta armada foi uma consequência da truculência do regime político iniciado em 1964. A ditadura rompeu todo o arcabouço legal do país, a ponto de não existir o habeas corpus. Todo o ímpeto transformador da juventude foi emparedado, produzindo desesperança, rancor e radicalização. Hoje é fácil fazer uma autocrítica daquele período, porque a história cuidou de revelar os profundos enganos e ilusões da luta armada. Mas naquela quadra violenta da vida nacional, essas conclusões eram quase impossíveis. Os dirigentes do PCdoB eram comunistas experimentados, com longa tradição de luta política. Mas não foram capazes de perceber exatamente que país era aquele. Entre a intelectualidade brasileira prevalecia a ideia de que éramos “dois brasis”: um capitalista dependente e outro semifeudal, convivendo na mesma geografia. E isso era um erro teórico desastroso, que conduziu à guerrilha rural na “parte feudal” do Brasil. Enquanto isso a luta política se daria na “parte capitalista” do país. A articulação das duas formas de luta levaria ao processo revolucionário. Engano desastroso.
Cláudia – No livro, você analisa também outros erros estratégicos da guerrilha, como a subestimação das forças do Estado para enfrentar o foco guerrilheiro. Por que você acha que se mostraram tão “inocentes”?
Amorim – Sem dúvida, hoje é mais confortável analisar a questão. Não vivemos sob nenhuma tirania, a sua casa não vai ser invadida a qualquer momento, supostamente não há mais tortura e assassinato como políticas de Estado. É tudo mais fácil. Mas a guerrilha estava terrivelmente mal preparada para o tamanho do conflito que provocou. Sobreviventes do movimento, com quem conversei, me disseram que a guerrilha não estava pronta quando as tropas federais chegaram ao Araguaia. Mas é uma ingenuidade supor que um governo onipresente não iria descobrir um movimento armado que envolvia centenas de pessoas. O que acontecia com aqueles jovens é que eles estavam tão convencidos da justeza de sua luta, que desconsideraram o resto. É o que se chamou de “voluntarismo”: ousar lutar, ousar vencer. Só que a história não funciona assim. Você não faz uma revolução porque decide fazer, a qualquer preço, mesmo heroicamente. O movimento social transformador decorre de causas objetivas, que quase independem da vontade de algum indivíduo. E os comunistas não souberam perceber que a mudança no Brasil viria da urbanização acelerada e do crescimento da massa trabalhadora nos centros urbanos, como se deu. Acreditavam na força do exemplo revolucionário, que iria empolgar o Araguaia e o país. Que nada!
Cláudia – Além dos guerrilheiros, você falou muito também das vítimas que estavam do outro lado da luta, entre os militares. A esquerda diz que sofrer baixas faz parte da carreira militar. Você acha que eles merecem também mais destaque na imprensa, por exemplo?
Amorim – Sou um pesquisador independente. Não tenho filiação partidária nem patrocinadores. No meu entendimento, a verdade não tem cor. Não tive o menor constrangimento em dizer que aquilo foi uma guerra, com violência e crimes de parte a parte. Acho que as Forças Armadas trataram muito mal seus combatentes do Araguaia, impedindo inclusive que seus mortos tivessem qualquer tipo de reconhecimento público. Comunicados oficiais diziam que o sujeito tinha “sofrido um acidente”. As famílias eram proibidas de abrir os caixões, que chegavam lacrados. Em todo conflito, há razões opostas. E havia gente corajosa e abnegada nos dois campos da batalha. E, sim: acho que a mídia e os historiadores deveriam dar uma olhada mais de perto nos dois lados da luta no Araguaia.
Cláudia – Conte um pouco do processo do livro como documentário. Quando você começou a filmar as entrevistas, já tinha esse projeto em mente? A própria narrativa do livro, fragmentada, com muitas cenas entrecortadas, indica que você tinha esse projeto. Você escreveu um roteiro? Como será a montagem?
Amorim – Quando estava gravando entrevistas para o livro, decidi utilizar câmeras de alta definição para registrar os depoimentos. Quando o livro ficou pronto, extraí dele um roteiro para um documentário de longa metragem. Gravei mais de 20 horas de depoimentos, além de recolher imagens da época e alguns filmes feitos pelos militares. Há também um farto registro fotográfico. Apresentei um projeto para a Agência Nacional de Cinema (Ancine) e fui aprovado para captar investimentos com base nas leis de incentivo ao audiovisual. Agora pretendo fazer uma expedição ao Araguaia e revisitar as trilhas da guerrilha.