O julgamento do “mensalão” chega a sua etapa final. Boa parte da opinião pública comemora o fato de que, pela primeira vez, os poderosos podem enfrentar a cadeia por crimes de corrupção, desvio de dinheiro público e “compra” de votos no Congresso. É realmente a primeira vez na história da Suprema Corte que um processo tão amplo contra ex-ministros, líderes partidários, deputados e empresários resulta em condenações. Dos 38 réus acusados na Ação Penal 470, 25 já foram condenados por vários crimes. Parece que vai dar cadeia, mesmo! É algo inédito no Patropi, esse país de tantas maravilhas e riquezas, onde a corrupção grassa como mato comum, desde a Colônia, o Império e o primeiro esboço de República.
No entanto, há fortes questionamentos no ambiente jurídico e acadêmico do país a respeito da legalidade do processo. Em primeiro lugar, pessoas que não têm foro privilegiado, cidadãos comuns, sem mandato parlamentar ou função pública que obrigariam julgamento pelo STF, têm as suas condutas avaliadas por um tribunal de última instância, para cujas decisões não há recurso muito eficaz. Em segundo lugar, o meio jurídico e acadêmico levanta o problema de que se trata de um julgamento político de um projeto de poder – e não da conduta de indivíduos perante as leis. E os códigos penais brasileiros são claros em afirmar que a culpa por um crime deve ser individualizada, personalizada, mediante determnada atuação pessoal que resulte em delito. O Código de Processo Penal (o famoso CPP) impede acusações genéricas, baseadas em suposições. É preciso provar que fulano cometeu determinado crime – e não dizer que ele não poderia desconhecer que tal atitude era criminosa.
A plenitude do Estado de Direito se revela pelo fato de que nenhum acusado precisa provar a sua inocência. Ao contrário, cabe ao acusador provar a culpa do indivíduo. Se abrirmos mão desse direito fundamental – a presunção da inocência – estaremos admitindo nas cortes de justiça que uma confissão obtida sob tortura terá valor. Mesmo diante de uma confissão, o juízo precisa de outras provas, diretas ou circunstanciais, em seu somatório, para confirmar a declaração de culpa, sob pena de ter que absolver o acusado. Fugir a isso é renunciar às liberdades individuais, que nos foram muito caras.
No processo do “mensalão”, há muitas dúvidas relacionadas com tais princípios. Algumas acusações, baseadas na velha teoria jurídica alemã do “domínio dos fatos” (se o acusado era presidente do partido, ou da empresa, como não saberia o que estava acontecendo?) estão sendo vistas de modo crítico. O próprio autor da “teoria do domínio dos fatos”, no século passado, chamava atenção: “não generalizem a minha tese”. Todos nós desejamos que a prática da justiça no Brasil seja para todos – e não apenas para os pobres e desprotegidos. Mas há que resguardar os direitos individuais duramente conquistados.
Como forma de ilustrar essas afirmações, reproduzo, a seguir, o artigo escrito pelo advogado carica Marcus Vinícius Cordeiro, diretor da OAB/RJ e representante da instituição no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Leia e comente:
“Mensalão”: O Poder Judiciário como peça fundamental para se construir uma nova oposição no país
Marcus Vinícus Cordeiro
Nos dois últimos meses o julgamento da Ação Penal 470 vem suscitando debates em vários campos da vida nacional, extravasando o meio jurídico, em que comumente tais assuntos ficam restritos. Advogados, juristas, analistas políticos e os congressistas estão debruçados sobre o tema. Especialmente a mídia, nas suas várias formas, vem tratando dos múltiplos enfoques que o caso permite, cada qual pretendendo dele tirar o melhor proveito, em consonância com os seus propósitos, conhecidos ou não.
Aparentemente, o episódio situa a democracia brasileira em patamar deveras elevado, mostrando a quem interessar possa a liberdade e a soberania de nossas instituições, para as quais não há temas proibidos, nem pessoas acima de qualquer suspeita, fazendo valer a quimera de que aqui os poderosos também vão para a cadeia. Seria o protótipo do Brasil pelo qual tantos lutaram, com perdas de toda ordem, inclusive da própria vida. Seria….
Todavia, a análise isenta do caso não permite essa conclusão idílica, da qual alguns pretendem se servir. O julgamento do apelidado “mensalão” – assim alcunhado pelo denunciante e denunciado Roberto Jefferson – está se caracterizando como o coroamento da chamada “judiciliação da política”. Este movimento, apoiado pela grande mídia, busca agigantar o Poder Judiciário, em detrimento dos demais poderes da República, submetendo-os ao seu crivo exemplar. Nesse processo, a estratégia consiste na exposição do Executivo e do Legislativo à suspeição permanente, tratando-os como fontes inesgotáveis de corrupção, privilégios, nepotismo, ineficiências e tantas outras máculas, diuturnamente denunciadas e industriadas para o fim pretendido. E, assim, enfraquecidos pela desmoralização, restaria ao Poder Judiciário, com os seus homens de preto e ares severos – arquétipos dos vingadores das ficções -, restabelecer a moralidade, protegendo a sociedade dos “bandidos” encastelados nos altos cargos da República. E esse script a Suprema Corte está executando com perfeição.
Ocorre que dos personagens envolvidos, instituições públicas e privadas, assim como os indivíduos, cada qual está representando os interesses imediatos e históricos que lhes compete. E nesse dramatis personae, o Supremo Tribunal vem correspondendo ao que cabe ser feito por uma das peças mais importantes da superestrutura de uma sociedade: qual seja, cuidar dos interesses subjacentes de classe, ora ameaçados por um projeto que vem se delineando desde a chegada do PT ao poder, em 2003.
De fato, desde aquele momento, o país experimenta uma mudança quantitativa e qualitativa capaz de revirar toda a estrutura sedimentada ao longo de séculos, em termos econômicos, sociais e políticos. Apenas para citar alguns inquestionáveis exemplos, por força de uma política econômica centrada no binômio crescimento/distribuição de renda, o país vem se desenvolvendo de forma autônoma em face do capital internacional, promovendo uma justiça social jamais aplicada anteriormente pelas elites dominantes. É preciso lembrar que cerca de 30 milhões de pessoas ascenderam socialmente no curto espaço de tempo.
Nesse contexto, a geração de empregos – cerca de 14 milhões – e a adoção de políticas sociais de inclusão – bolsa-família, principalmente – alcançaram os pobres e humildes do país, transformando-os em agentes das mudanças que permitiram o enfretamento das crises internacionais, o pagamento da dívida externa e demais medidas que posicionaram o Brasil no caminho de se tornar, brevemente, a 5ª. maior economia do mundo.
No cenário em que grandes massas de excluídos passam a se movimentar no campo social, amparadas por uma economia favorável e que assegura suas necessidades básicas, resta evidente que o passo seguinte levará esse contingente a uma participação política mais ativa e consciente. E agora não mais em prol de bens de vida antes sonegados pelas políticas elitistas excludentes.
Esse contingente de pessoas, agora adentrando o mercado de consumo, que sempre lhes foi restrito, estará apto a reivindicar mais, aprofundando as conquistas, elevando suas condições de vida material, participando de forma mais ampla da geração da riqueza, advinda da sua inserção no processo produtivo de um país em crescimento. E aqui se vislumbra grandes riscos para os privilégios acumulados ao longo dos séculos, com perdas para as castas que destes sempre se beneficiaram. Notadamente, porque o Estado estará a serviço de outras reivindicações, não mais as suas.
Pois bem. Na iminência de circunstâncias tão transformadoras para as elites brasileiras, a oposição firme seria o caminho democrático para barrar o projeto em marcha. No campo político, contudo, as tentativas nesse sentido vêm resultando insuficienes desde o primeiro mandato do Presidente Lula. Amealhando índices de aprovação e popularidade jamais experimentados por qualquer outro governante, Lula não só se reelegeu como fez a sua sucessora. E Dilma que vem sendo, igualmente, a partir da manutenção da mesma orientação econômica/social, altamente avaliada.
Nessa situação desoladora para as elites, a estratégia do descrédito na política surge como a bóia dos afogados, para – ao menos – criar em parcelas da população (a classe média conservadora, marcadamente) o sentimento de rejeição que possa ser aproveitado, senão como trava, ao menos como inibidor das mudanças, tornando-as, se possível, controláveis.
Malograda a tentativa da oposição política, pensada principalmente no retorno do PSDB ao poder, cujo desempenho no governo marcou-se pelas privatizações, juros altos, tomadas de empréstimos à banca estrangeira, arrocho salarial e demais quejandos, que fizeram a festa do ideário neoliberal e enriqueceram os seus principais mentores, a grande mídia – porta-voz dos descontentes – vem buscando formas várias de se opor ao processo. Eis então que surge a grande oportunidade do julgamento do “mensalão”.
Elevado à condição de maior julgamento da Corte, o caso vem sendo tratado com ares de grande espetáculo, com cobertura digna dos eventos mais noticiosos, como Copa do Mundo, o Carnaval etc. Direcionando inédita importância a um julgamento, encontra-se nas páginas dos jornais, nas matérias televisivas. desde o resumo do assunto – sempre capenga no tocante ao conteúdo jurídico -, até detalhes como a biografia dos Ministros julgadores, a disposição das cadeiras na sala de sessão, montagens com as caras dos acusados no estilo “procura-se”, comentaristas políticos interpretando os códigos e regimentos. E tudo isso para demonstrar, sem o menor constrangimento, o quanto importa a condenação de todos para o bem da moralidade política.
Temos, assim, o Supremo Tribunal enredado na estratégia de barrar um processo político proposto por um partido. Basta ver que o sistema denunciado é velho conhecido das agremiações partidárias e já fora utilizado antes pelo próprio PSDB, no chamado “mensalão mineiro”, processo precedente do atual na pauta do STF, inexplicavelmente ainda pendente de apreciação. Fosse a intenção da Corte dar uma lição de ética e moralidade no plano da política nacional, começaria por afastar toda e qualquer injunção vinculativa ao PT ou a qualquer outro partido. Seguiria a trilha de julgar um sistema nefando de financiamento de campanhas eleitorais, pressuposto de negócios e favorecimentos dos e para os envolvidos.
Deveria enfrentar o tema em sua forma ampla e histórica, procedendo aos trâmites judiciais necessários para a validação do processo, juntando autos por dependência, aprofundando a instrução, colhendo provas irrefutáveis. Mesmo que demorasse um pouco mais, a nação seria brindada com um processo sério, imparcial, justo. Mas, em lugar disso, surgiu um processo precário em suas provas, inédito em suas teses judicantes, disposto em sessões organizadas como jamais ocorrera antes, coincidente de forma injustificada com um processo eleitoral.
Não sem razão os advogados criminalistas do país se estarreceram com a reviravolta repentina do Tribunal em relação à sua jurisprudência. Enxergam nisso um claro retrocesso nos julgados que serviam de paradigma para o posicionamento da Corte em casos tais, levado a efeito apenas com o fito de homologar a condenação previamente imposta aos réus. Assim está sendo interpretada a predominância da tese do “domínio do fato”, autorizando, como vem ocorrendo, condenações baseadas no que o réu é e não no que ele fez comprovadamente nos autos.
É o fim do garantismo e do amplo direito de defesa, fazendo tabula rasa da máxima do processo civilizatório relativa à presunção da inocência. E muitas são as vozes autorizadas que assim estão analisando o caso, mormente porque aflora uma excepcionalidade jamais vista anteriormente da parte da Alta Corte. Casos tão ou mais graves praticados antes, levados ao conhecimento do Tribunal, a par de não causarem qualquer furor, não mereceram a sanha implacável ora demonstrada. Um, em particular, relativo à apreciação da Lei de Anistia à luz da Constituição Federal e do sistema mundial de Direitos Humanos, até envergonhou a consciência jurídica mundial ao resultar na absolvição de torturadores.
Tudo somado, resta patente a natureza política do julgamento em curso da Ação Penal 470, ditada pela necessidade de reprimenda ao partido político que, ao longos dos últims dez anos, perpetrou mudanças capazes de alterar a substância da participação das classes na vida nacional. Nesse sentido, a atuação do STF depende muito mais de seu posicionamento na superestrutura do que da concepção íntima de seus componentes. Veja-se, a propósito, que a voz dissonante do Revisor, no intuito de demonstrar a ausência de provas capazes de levar à condenação dos principais acusados. Fez referência textuais a julgados da Corte adequados ao caso, com citação nominal do Ministro Celso de Mello, sendo ignorado solenemente. Paradoxalmente, et por cause, o Ministro Luiz Fux teve que lançar mão de jurisprudência da Suprema Corte Portuguesa para justificar o seu voto. De todos, no entanto, o que mais evidenciou essa vontade de correição da política pelo Supremo Tribunal foi o Ministro Ayres de Britto. Sem meias palavras, sentenciou: “Com a velha, matreira e renitente inspiração patrimonialista, um projeto de poder foi arquitetado. Não de governo, porque projeto de governo é lícito, mas um projeto de poder que vai muito além de um quadriênio quadruplicado (….) É continuísmo governamental. Golpe, portanto, nesse conteúdo da democracia, que é republicanismo, que postula renovação dos quadros dirigentes.”
E, assim, não havendo renovação da direção política do país pelo meio legítimo do voto, o STF estará pronto para intervir. Isto é, dependendo, é claro, de quem estiver no poder.