Dilma foi ao Senado enfrentar seus acusadores. Um gesto dramático, endereçado (e filmado) para a História. Sabendo que não iria convencer nenhum de seus opositores. Ela vai perder o mandato e os direitos políticos.

impeachment 60

Dilma chega ao Senado. Imagem da TV Senado.

Se Dilma Dana Rousseff tivesse agido em seu governo da mesma maneira corajosa com que enfrentou os acusadores no Senado, talvez este Brasil fosse hoje um país diferente. Leu um discurso de 45 minutos, na abertura da sessão de julgamento, tropeçando em algumas palavras, como é de seu estilo. Mas cresceu ao responder de improviso ao fraco (diria pobre) questionamento de um conjunto de senadores que teme por sua própria segurança face à Lava-Jato. Mesmo Aécio Neves (PSDB-MG), principal opositor nas eleições de 2014, pegou leve. Apenas repetiu trechos do debate eleitoral derrotado nas urnas. Decepcionou.

No discurso formal, no início, Dilma foi até enfadonha, mastigando uma narrativa já exposta à exaustão. Mas – repito – cresceu quando abriu o coração fora do texto. A primeira mulher chefe do Estado brasileiro cometeu o disparate de enfrentar as raposas da política, face a face. Em geral são representantes de oligarquias e fisiologismos, sem falar que usufruem do grande capital. O Congresso Nacional, conforme a descrição de um autor português, é uma espécie de assembleia-geral de bandidos, comandada por um criminoso. E por falar nisso, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente afastado da Câmara Federal, foi o nome mais citado por Dilma, que poupou outros, como Romero Jucá e Michel Temer. A presidente, que ainda tem o cargo (por pouco tempo) mas não o mando, foi muito econômica em matéria de nominar os autores daquilo que chama de “golpe” parlamentar.

Concentrar a ira de Dilma sobre Cunha não representa nenhum progresso em matéria de impeachment. Já disse aqui, inúmeras vezes, que é um jogo de cartas marcadas. Para mais ou para menos, ela perde por 60 votos a 20, com a omissão do presidente da casa, o senador Renan Calheiros, ele mesmo acusado na Lava-Jato. Se Renan votar, será uma surpresa. O cara gosta de ficar em cima do muro. Só que não poderá ficar em cima do Moro. Isso não dá – até agora. Como seria o roteiro para pegar Renan? Primeiro: perder o cargo no Senado. Segundo: ser cassado por falta de decoro. Terceiro: o STF o manda para o juiz curitibano de primeira instância, especializado em crimes do colarinho branco. Isso não vai acontecer. Podemos esquecer.

impeachment 61

Em seu enfrentamento com os senadores acusadores, a maioria da casa, Dilma Rousseff defendeu algumas teses:

  1. 1. As acusações de crime de responsabilidade não têm base legal. É um golpe parlamentar, modalidade aperfeiçoada após o fim da Guerra Fria. Nada de forças armadas. Presidentes anteriores editaram decretos de suplementação de crédito e nunca foram incomodados por isso.
  2. O Plano Safra, destinado a estimular a agricultura familiar e o agronegócio, é regido por lei de 1992 e não depende de aprovação da Presidência. Ela nem sabia (?) o que acontecia nessa área da economia. Era assunto dos ministros específicos.
  3. Os bancos públicos pagaram as contas dos projetos de distribuição de renda (bolsa família, minha casa etc) porque esta era a rotina. O atraso no repasse de verbas do Tesouro Nacional para as instituições financeiras não significaram operações de crédito. Isto é discutível, mas também não forma motivo para impedir o mandato popular.
  4. As “pedaladas” fiscais somam apenas 0,18% do total das contas públicas. Ela se enganou e disse que eram apenas 0,15%. No Parlamento europeu, não se discute divergências nas contas inferiores a 2%. Por que discutimos essas taxas em um país em desenvolvimento? Assunto para economistas e advogados. Ou parte da argumentação para um golpe?

A argumentação da presidente afastada, baseada na tese do golpe parlamentar, peca pela atuação do Supremo Tribunal Federal. A presença do presidente do STF no comando do Senado, transformado em tribunal, empresta legalidade ao processo. Qual golpe poderia prosperar sob a Suprema Corte de um país? Os golpistas de 1964, que não eram só militares (costumo chamar de movimento cívico-militar contra Jango), derrubaram o presidente eleito e todo o ministério, cassaram dezenas de mandatos parlamentares, dissolveram os partidos políticos e fecharam o Congresso. Aposentaram compulsoriamente três ministros do STF, todos juristas notáveis, para assegurar maioria na corte. Fora outras tramas. Tínhamos tanques nas ruas, sequestros, prisões ilegais, torturas e mortes. Mergulharam o país em 21 anos de atraso e trevas. Isso a gente entende.

Mas, e agora? Acusar um bando de golpistas parece coisa simples, reforçada pelo vandalismo político de certos deputados e senadores. A sessão da Câmara Federal de 17 de abril é uma vergonha que o país de pouca memória custará a apagar. Mas é só isso? Somos mesmo uma republiqueta de bananas? Mandamos uma presidente para os quintos, apesar de ter sido reeleita por 54 milhões de brasileirinhos? Isso também parece um pouco demais.

impeachment 59

A advogada de acusação, Janaína Paschoal, sempre destemperada. (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Esperava que Dilma desse nome aos bois. Quem são os golpistas, afinal? Esperava que ela jogasse na cara de um Congresso de larápios e oportunistas de última hora: os nomes, o endereço partidário e o CPF dos golpistas. Ela não o fez. Queria um discurso fora do script. Não aconteceu. A defesa de Dilma recorreu ao senador petista Lindberg Farias (PT-RJ). Este senador deu o nome aos bois: os ultraconservadores, os fundamentalistas religiosos, a burguesia ansiosa de obter mais lucros em cima da redução dos direitos trabalhistas (e não da competitividade na produção, porque custa caro), os que querem privatizar tudo (do petróleo aos bancos públicos), a conspiração da grande mídia, capitaneada pela Rede Globo. Lindberg fez carreira política no movimento estudantil de esquerda. Foi presidente da UNE.

A presidente afastada, na véspera da cassação de seu mandato e de seus direitos políticos, concordou: assinou abaixo das palavras do líder estudantil que virou político de renome. Disse que era isso mesmo. Poderia tê-lo dito com palavras próprias, mesmo tropeçando nas letras. Usou um subterfúgio? Com palavras de outro? Pode ter sido orientada pelos advogados. Para evitar questionamentos judiciais paralelos ao impeachment. No dia 13 de março de 1964, duas semanas antes do golpe militar, meu pai me levou ao comício de Jango na Central do Brasil. Foi um encontro com 200 mil trabalhadores, em frente ao quartel-general do Exército. O presidente falou sobre as reformas de base: tributária, política ampla, voto dos analfabetos, o direito de todo cidadão brasileiro a concorrer a cargos públicos. O governo dele só durou mais duas semanas. O resto a gente já sabe. Mas foi na voz do presidente.

Quando Dilma transferiu a Lindberg Farias a nominação dos golpistas, a partir do discurso do senador, digno de um Daniel Cohn-Bendit da Paris de 1968, abriu mão de fazer o que Jango fez. Não se trata de fraqueza pessoal dessa mulher que passou pelos porões da ditadura em nosso país. Trata-se de uma equivocada tentativa de querer convencer golpistas a desistir do golpe. Eles estão mais preocupados com benefícios pessoais e – se possível – faturar algum. O resto é bobagem. Dilma perdeu a oportunidade de afirmar quem são eles.  Acusou Eduardo Cunha – mas omitiu Michel Temer, seu  vice por acordo político,  agora presidente interino. Falou lateralmente sobre o Congresso, responsabilizando  a Câmara Federal em geral, um bando de canalhas. Como afirmou um escritor de Lisboa, que já foi a nossa metrópole colonialista.

impeachment 57

O senador Aécio e o Lewandowski, durante o segundo dia de julgamento de Dilma Rousseff (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Os opositores de Dilma afirmam que o governo petista produziu a crise econômica: incompetência, desmandos e corrupção desenfreada. Nada disso faltou ao último governo do PT, que agora se encerra. Mas responsabilizar a presidente pela crise capitalista mundial é um pouco demais. O superciclo das commodities, baseado na compra de produtos brutos pelas maiores economias (petróleo, ferro, grãos, coisas não industrializadas, que favoreciam o Brasil) começou a afundar em 2013. A desaceleração da economia chinesa pegou o Brasil pela proa. A Europa afundou na crise financeira, atingindo especialmente a Grécia, a Espanha e Portugal, os elos mais frágeis. Desde o ano de 2008, o sistema bancário americano vinha numa rotina criminosa de quebradeiras. A chamada “bolha imobiliária”, que arrastou a banca mundial, era acostumada a financiar imóveis para quem não podia pagar.

Quando o tsunami da crise chegou ao litoral brasileiro (definido por Lula como uma “marolinha”), não estávamos preparados. O governo do Tio Sam optou por elevar as taxas de juros, atraindo investimentos globais e derrubando as moedas em todo o planeta. Deu incentivos de Estado à produção. Obama disponibilizou 1 trilhão de dólares para resolver o problema de insolvência dos bandos. E acredite: estatizou algumas instituições financeiras, em um país que defende a liberdade de mercado. Aqui: optamos por taxas irreais, produzindo enorme desvalorização do real frente ao dólar. A Selic (taxa oficial de juros) estava em torno de 8%. Agora chega a 14.25%. Sob FHC, já chegou a 26,5%. O aumento da cotação do dólar acelera a subida dos preços no mercado nacional, porque muitos insumos à produção são rastreados em dólar. A inflação sobe, na forma de preços. O consumidor se encolhe, ameaçando a produção e o emprego. Digo isso de forma genérica, porque o quadro real é muito mais complexo.

Afirmar que tudo isso é obra de Dilma, Lula e do PT é totalmente absurdo. Vamos responsabilizar a presidente pela crise dos imigrantes na Europa? Só faltava isso. Que tal o terrorismo? Brincadeiras à parte, o fato é que o segundo mandato de Dilma foi um desastre. Sem iniciativa, abandono total dos movimentos sociais, fixação na política parlamentar e no monetarismo, se esquecendo que há um mundo real que nada tem a ver com isso. Nem se fala mais em reforma agrária, que poderia criar 20 milhões de postos de trabalho no campo e desinflar as favelas urbanas, reduzir a violência e coisas que tais. Dilma, Lula e o PT erraram demais. Os golpistas, meus caros amigos, são os mesmos de sempre: de Vargas, de JK, Jânio, Jango e Dilma. E sob a suspeita do capital estrangeiro, ávido por petróleo, ferro, manganês, soja e trigo. É sempre a mesma porcaria.

É tudo a mesma coisa. O que  eu esperava era um modelo transformador. Partido dos Trabalhadores.  Conquistou a Presidência após quatro  tentativas. Representava um novo tempo. Falhou no básico: a ética. Deveria fazer, afinal, as tão famosas reformas política, tributária e da previdência. Mudanças estruturais no capitalismo brasileiro, que é mesmo o nosso caminho, até porque não há outro.  Desde menino, ouço a mesma churumela. Parece que não tem fim. Sem Dilma, pode ser ainda pior. Quem duvida disso?

 

Sobre Carlos Amorim

Carlos Amorim é jornalista profissional há mais de 40 anos. Começou, aos 16, como repórter do jornal A Notícia, do Rio de Janeiro. Trabalhou 19 anos nas Organizações Globo, cinco no jornal O Globo (repórter especial e editor-assistente da editoria Grande Rio) e 14 na TV Globo. Esteve no SBT, na Rede Manchete e na TV Record. Foi fundador do Jornal da Manchete; chefe de redação do Globo Repórter; editor-chefe do Jornal da Globo; editor-chefe do Jornal Hoje; editor-chefe (eventual) do Jornal Nacional; diretor-geral do Fantástico; diretor de jornalismo da Globo no Rio e em São Paulo; diretor de eventos especiais da Central Globo de Jornalismo. Foi diretor da Divisão de Programas de Jornalismo da Rede Manchete. Diretor-executivo da Rede Bandeirantes de Rádio e Televisão, onde implantou o canal de notícias Bandnews. Criador do Domingo Espetacular da TV Record. Atuou em vários programas de linha de show na Globo, Manchete e SBT. Dirigiu transmissões de carnaval e a edição do Rock In Rio 2 (1991). Escreveu, produziu e dirigiu 56 documentários de televisão. Ganhou o prêmio da crítica do Festival de Cine, Vídeo e Televisão de Roma, em 1984, com um especial sobre Elis Regina. Recebeu o prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1994, na categoria Reportagem, com a melhor obra de não-ficção do ano: Comando Vermelho – A história secreta do crime organizado (Record – 1994). É autor de CV_PCC- A irmandade do crime (Record – 2004) e O Assalto ao Poder (Record – 2010). Recebeu o prêmio Simon Bolívar de Jornalismo, em 1997, na categoria Televisão (equipe), com um especial sobre a medicina em Cuba (reportagem de Florestan Fernandes Jr). Recebeu o prêmio Wladimir Herzog, na categoria Televisão (equipe), com uma série de reportagens de Fátima Souza para o Jornal da Band (“O medo na sala de aula”). Como diretor da linha de show do SBT, recebeu o prêmio Comunique-se, em 2006, com o programa Charme (Adriane Galisteu), considerado o melhor talk-show do ano. Em 2007, criou a série “9mm: São Paulo”, produzida pela Moonshot Pictures e pela FOX Latin America, vencedora do prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor série da televisão brasileira em 2008. Em 2008, foi diretor artístico e de programação das emissoras afiliadas do SBT no Paraná e diretor do SBT, em São Paulo, nos anos de 2005/06/07 (Charme, Casos de Família, Ratinho, Documenta Brasil etc). Vencedor do Prêmio Jabuti 2011, da Câmara Brasileira do Livro, com “Assalto ao Poder”. Autor de quatro obras pela Editora Record, foi finalista do certame literário três vezes. Atuou como professor convidado do curso “Negócios em Televisão e Cinema” da Fundação Getúlio Vargas no Rio e em São Paulo (2004 e 2005). A maior parte da carreira do jornalista Carlos Amorim esteve voltada para a TV, mas durante muitos anos, paralelamente, também foi ligado à mídia impressa. Foi repórter especial do Jornal da Tarde, articulista do Jornal do Brasil, colaborador da revista História Viva entre outras publicações. Atualmente, trabalha como autor, roteirista e diretor para projetos de cinema e televisão segmentada. Fonte: resumo curricular publicado pela PUC-RJ em “No Próximo Bloco – O jornalismo brasileiro na TV e na Internet”, livro organizado por Ernesto Rodrigues em 2006 e atualizado em 2008. As demais atualizações foram feitas pelo autor.
Esse post foi publicado em Politica e sociedade. Bookmark o link permanente.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s