
Beltrame comandou a segurança do Rio por 10 aos. Foto do Bope.
O secretário de segurança do Rio pegou o boné e foi para casa. O delegado federal licenciado José Mariano Beltrame, gaúcho, 57 anos, pediu as contas após dez anos à frente das forças policiais fluminenses. Foi na segunda-feira passada (10 out). Um dia depois, o delegado-chefe da Polícia Civil, Fernando Veloso, também recolheu o boné: “missão cumprida”. É mais um episódio na dramática falência do governo do Rio, onde o governador, Luís Fernando Pezão, sofre de câncer e está afastado, e onde o vice, Francisco Dornelles, não consegue pagar em dia o funcionalismo público – inclusive a polícia e os bombeiros. O Estado, governado pelo PMDB há vários mandatos, abriu o bico. Podemos até dizer que tudo isso é consequência da crise geral do país. Mas não me lembro de um desgoverno de tal envergadura na minha terra natal.
Mariano Beltrame se torou célebre após criar, em 2008, o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs). É tido como o “pai” do modelo. Mas há controvérsias: a Colômbia fez o mesmo, anos antes, através do Movimento Operacional Medelín (MOM). No país vizinho, houve uma significativa redução nos índices de criminalidade. Lá, favelas foram removidas com tratores e incêndios; traficantes, antes comandados por Pablo Emílio Escobar Gaviria, foram expulsos com tanque e tropas; havia uma unanimidade no país a respeito do combate ao crime organizado. Aqui, não foi bem assim – nem era possível demolir favelas, amplos espaços eleitorais.

Ocupação policial-militar das comunidades pobres. Imagem da TV Globo.
O projeto original de Beltrame era razoavelmente simples: as forças de segurança ocupariam os “territórios liberados” do narcotráfico, admitindo um estado de guerra civil não-declarada, e o poder público entraria com a solução dos angustiantes problemas das populações afetadas: transporte, escola, creche, moradia, saneamento, lazer etc. Não foi o que aconteceu. Em um cenário no qual há cerca de 360 favelas, loteamentos, conjuntos habitacionais e bairros paupérrimos, onde o tráfico de drogas tem as suas bases, o governo fluminense conseguiu implantar 38 UPPs em 8 anos. E a um custo de 1,8 bilhão de reais. A criação das UPPs foi saudada pela grande mídia como a mais importante iniciativa de combate ao narcotráfico no Brasil. Vendo de hoje, um ledo engano.
Um antigo repórter especial da TV Globo, amigo de décadas, comentou comigo: “Na Globo, não dá para se pensar em pautas sobre violência e criminalidade, porque eles acham que isso acabou”. Só ingenuidade? Algum outro motivo por trás dessa conclusão? Desde o início do projeto de ocupação policial-militar dos redutos do tráfico, Beltrame já avisava: “Se o poder público não fizer a parte dele, com melhorias concretas no modo de vida das pessoas, não vai funcionar”. Dito e feito. Beltrame pegou o boné. Na gestão dele houve toneladas de apreensões de drogas e armamentos (apesar de poucas prisões significativas), mas o chamado “pode público” não apareceu para resolver os impasses sociais. O narcotráfico sequer se abalou. Não há informações confiáveis acerca de uma redução da atividade.
As UPPs, sem as políticas sociais, se tornaram uma espécie de pequenos estados-de-sítio sobre comunidades pobres. As polícias e as Forças Armadas invadiam residências sem mandado judicial, revistavam até crianças indo para a escola pública. Os traficantes, nascidos naquela pobreza, se dissolviam em meio à população silenciosa. Em 70% das UPPs, houve denúncias de maus tratos e assédios contra os moradores. O caso emblemático é o sequestro, tortura, morte e desaparecimento do pedreiro Amarildo, na Rocinha. Mas há outros: durante a ocupação das favelas do Complexo do Alemão, com milhares de homens da lei, blindados e helicópteros, um tenente do Exército (formado pela Academia Militar de Agulhas Negras) foi preso após roubar dois aparelhos de ar condicionado de um favelado. É assim que vamos solucionar o problema?

Militares no Complexo do Alemão, um dos maiores fracassos das UPPs. Imagem TV Brasil.
A saída de Beltrame e do delegado Veloso é o divisor de águas nessa questão. Jogaram a toalha em um governo falido. A política de segurança pública preconizada pelas UPPs não tem paralelo na história brasileira, apesar dos equívocos, entre os quais destaco a necessidade de desmilitarização das polícias. Uma equipe da PM do Rio, que atende a um caso de briga entre vizinhos, vai ao local armada com fuzis automáticos e granadas. É não só um exagero, mas um absurdo.
Tivemos no país, no último período de 80 anos, duas políticas de segurança. A primeira delas, durante a ditadura Vargas, foi a Lei de Proteção ao Estado. Entre outros desmandos, afirmava que o acusado tinha que provar a sua inocência, quando o moderno direito diz que o ônus da prova é do acusador. Ou seja: o acusado era condenado na denúncia. Depois dessa excrescência, tivemos a Lei de Segurança Nacional (LSN) do regime militar, responsável pela implantação da pena de morte, prisões ilegais e assassinatos de opositores do regime. As UPPs pareciam mais arejadas. Mas não foi o que aconteceu.