Tive notícia da morte de uma mulher, nordestina, pobre, favelada, mãe de um menino do tráfico no Rio de Janeiro, que foi uma das minhas fontes ao escrever meu primeiro livro sobre violência urbana e crime organizado, “Comando Vermelho – A história secreta do crime organizado”, premiado com o meu primeiro Jabuti, em 1994. Geralda morreu de causas naturais. Foi uma das pessoas que me abriram as portas das favelas e do encontro com o mundo do crime. Sem isso. não teria conseguido mergulhar no tema do narcotráfico e da vida bandida que assola o nosso país. Fui um dos seus “fregueses”, quando ela lavava e passava para a clientela de Santa Teresa, bairro onde morei, na zona boêmia do Rio. Conversamos muitas horas. Fui com ela ao Morro dos Prazeres. Passei pela rapaziada do movimento em companhia da moradora. Fiquei amigo do filho, Tião, um jovem bandido.
O texto a seguir conta um pouco da história dessa brava mulher:
Geralda, a mãe.
Ela veio do interior de Pernambuco. Nasceu num tão pequeno lugarejo que nem nome tinha. Escola também não tinha, nem água encanada ou banheiro. Naquele fim de mundo, ninguém jamais possuiu fogão a gás ou geladeira – ou papel higiênico, pasta de dentes e aquelas coisas simples, como luz elétrica, que fazem a diferença entre civilização e deserto. Água de beber e para dar aos animais de criação era preciso buscar numa cacimba a oito quilômetros de distância. Pouco mais de uma légua, como se diz no interior do Nordeste. A família – pai, mãe, avó materna e oito filhos – vivia numa tapera miserável. Para sobreviver, milho, feijão, macaxeira, cabras e galinhas. Até o mandacaru, cactos espinhento, servia de comida para humanos e bichos. Sete meses de seca e sol inclemente por ano. Uma condição de vida, como diriam os engravatados economistas, “abaixo da linha da miséria”.
Geralda teve dois azares na vida: nascer naquele lugar e nascer bonita de doer. Aos 12 anos, já era um problema para a família. Cabelo sarará arrepiado. Olhos esverdeados. Boca carnuda. Peitos espetados e bunda arrebitada. Era o tipo da Gabriela de Jorge Amado. O pai, Joselão, assim chamado porque era um José muito alto para o padrão da humanidade local, percebeu que aquela filha ia terminar em perdição. Aos 14 anos, Geralda era a Gisele Bündchen local. Não podia mais ficar ali. Joselão consultou o padre que aparecia pela vila uma vez por mês. Este, por sua vez, consultou o Jacinto Bezerra, proprietário de terras e comerciante, que tinha parentes no Rio de Janeiro. Jacinto, sertanejo de 76 anos, quis conhecer a moça. Não se sabe ao certo o quanto ele a conheceu, mas o velho Jacinto decidiu enviar a garota para a Cidade Maravilhosa, a fim de trabalhar como empregada na casa da família. As tratativas não foram fáceis nem rápidas. Tudo se resolvia por cartas de lá para cá. Essas coisas aconteciam na segunda metade dos anos 60 do século passado. Não havia nenhuma das facilidades que conhecemos hoje. Até telefone era difícil de encontrar entre a classe média.
Só com 16 anos é que essa Geralda chegou ao Rio de Janeiro. Chegou de ônibus, após uma interminável viagem por metade do Brasil. Trazia duas mudas de roupa e uns poucos trocados para a comida do caminho. Menstruou pela primeira vez dentro do ônibus. E não sabia o que fazer, vendo os abismos rolarem dentro dos abismos. Bicho do mato, falava pouco – na verdade tinha poucas palavras em seu idioma de analfabeta. Mas a longa viagem encheu os seus olhos de um mundo novo. Olhava tudo, absorvia tudo, passava pelas cidades iluminadas. A luz era como um tesouro de contas preciosas. “Nunca mais vou esquecer de todas aquelas coisas acesas; me sentia num céu estrelado” – ela me disse um dia. Ao chegar na rodoviária do Rio, que naquela época ficava no centro da cidade, após uma série de peripécias, onde até a polícia ajudou, a família de Jacinto conseguiu resgatar Geralda, em meio e centenas de viajantes, malas e embrulhos. Finalmente, a jovem pernambucana tinha chegado ao céu.
E o céu se chamava Estácio. Bairro tradicional da zona central do Rio, cujo nome homenageia o fundador da cidade, Estácio de Sá. Berço da malandragem carioca, abrigou a primeira escola de samba, a “Deixa Falar”, agremiação criada por Ismael Silva em 1928. O Estácio foi cantado em músicas de Noel Rosa e muitos outros expoentes da MPB. Um dos últimos foi Luiz Melodia:
“Se alguém quer matar-me de amor, que me mate no Estácio, bem no compasso, bem junto ao passo, do passista da escola de samba do Largo do Estácio.”
O Estácio cresceu em torno da Avenida Salvador de Sá, onde as ruas transversais abrigavam as vilas operárias dos funcionários das fábricas locais, principalmente da Companhia Cervejaria Brahma. Nos botequins Apolo e Cumpadre, na subida do Morro de São Carlos, reuniam-se as rodas de samba. Entre os frequentadores, além de Ismael Silva e Donga, era possível encontrar Cartola, Carlos Cachaça e Nelson Cavaquinho, a elite dos bambas da época. Quando a moça pernambucana chegou, o bairro ainda tinha tranquilidade, com ruas de paralelepípedo e pequenos sobrados ao estilo lisboeta. Geralda trabalhava duro. Lavava e passava as roupas da casa. Esfregava o chão e ajudava na cozinha. Trabalhava de joelhos, numa lembrança dos tempos da escravidão. Não tinha propriamente um salário, mas ganhava o que vestir e uns trocados no fim de semana. Essas relações de trabalho, que envolviam meninas pobres do interior que eram mais ou menos “adotadas” pela classe média, são resquícios da história escravocrata brasileira, que durou pelo menos até os anos 1970.
Mas a garota era bem tratada pela família. Aprendeu a ler e escrever, freqüentou um curso primário noturno. No final dos anos 60, a rede pública de ensino criou o terceiro turno e outros mecanismos de combate ao analfabetismo. Muita gente pobre se beneficiou com os cursos. Durante os dois ou três anos que viveu ali, Geralda descobriu um mundo novo, absolutamente deslumbrante. Água nas torneiras. Chuveiro. Banheiro com descarga. Pão francês e café com leite. Rádio de pilha. Uma maravilha só! Esperta, aprendeu muito e depressa. Absorvia cada conversa da família, desenvolveu vocabulário e ficou “ilustrada”, expressão que usava frequentemente.
Conheci Geralda na metade dos anos 80, quando era uma jovem senhora de 34 anos e mãe de três filhos, entre eles Tião, personagem do meu livro “Comando Vermelho – A história secreta do crime organizado”, premiado no ano de 1994, pela Câmara Brasileira do Livro, na categoria reportagem. O meu primeiro Jabuti. Tião se tornou um soldado do tráfico. Foi morto numa das incontáveis guerras de gangues. Suas duas irmãs, Martinha e Zilda, também são consideradas “desaparecidas” nos conflitos urbanos do Rio de Janeiro. Se não me engano, foi em 1984 que Geralda passou a trabalhar como lavadeira em minha casa. Nessa ocasião, morava numa casa sobre o túnel da Rua Alice, na divisa entre os bairros de Santa Teresa e Rio Comprido, vizinha do Morro da Mineira, favela controlada pelo tráfico de drogas do Comando Vermelho.
Geralda tinha muitos fregueses como lavadeira, atividade que garantia o sustento dela e da família. Santa Teresa foi um bairro que abrigava artistas, jornalistas, sambistas, atores, pintores, escritores e intelectuais da época. E essa Geralda nordestina trabalhava para muitos deles. Gente famosa, inclusive. Com o passar dos anos, a violência entre quadrilhas da Mineira, do Escondidinho, Morro dos Prazeres e outras favelas da área, expulsaram os boêmios e os intelectuais. Santa Teresa virou um lugar perigoso.
No Rio de Janeiro só há dois lugares em que ainda funcionam linhas de bondes elétricos. O bondinho do Corcovado, que leva turistas até o Cristo Redentor – e o bondinho de Santa Teresa, que segue do centro da cidade, passa pelos Arcos da Lapa, e vai até o último bairro boêmio da cidade, hoje ameaçado pelos assaltantes que atacam os passageiros. Naquela época eu andava de bonde tranquilamente. Muitas vezes, deixava o carro em casa e ia de bonde para o centro do Rio, quando trabalhava no jornal O Globo, relativamente perto da Lapa. Muitas vezes acompanhei Geralda neste bonde. Ela sempre carregada com grandes trouxas de roupa lavada, para entregar aos clientes. Outras ocasiões, a levei de carro até o Morro dos Prazeres, onde morava, e onde conheci Tião e o resto da família.
O depoimento dessa mulher é tão importante, que o descrevo a seguir, entre aspas. Compreender essa Geralda é compreender o drama de milhões de brasileiros. Quando, neste pais assassinado, a gente se pergunta o que foi que aconteceu, é preciso ouvir essa voz anônima. Decidi não fornecer muitos detalhes sobre Geralda, de modo a protegê-la de constrangimentos. A história, que reproduzo da memória que tenho de nossas incontáveis conversas, está bem resumida. Nos muitos anos que trabalhei como repórter, aprendi a prestar atenção ao que as pessoas falavam e não fazia muitas anotações. Com o tempo de trabalho, desenvolvi a capacidade de reproduzir quase literalmente o que tinha ouvido. Acompanhe:
“Quando cheguei no Rio, era muito bobinha. Cada coisa que via era uma novidade atrás da outra. Eu, que vinha do fim do mundo, achava que tinha acontecido um milagre na minha vida. Não tinha nem ideia do que iria passar nessa cidade. Foram tantas as minhas tragédias e dores… Mas, agora que você me perguntou, acho que não me arrependo. Não me arrependo, não. Se tivesse ficado no sertão, era capaz de ter morrido de fome e doença. Aqui eu morri só do coração. Mas continuo bem viva e ainda espero conseguir alguma coisa de bom nessa vida.
“Na casa da rua… (deixo de publicar o nome da rua), lá no Estácio, acho que fui a pessoa mais feliz desse mundo. Trabalhava de joelhos, esfregando, mas era feliz. Logo me encantei por um menino da casa. Já era um rapaz. Sonhava com ele. Ele sempre esbarrava em mim quando passava. Sabe aquela mão boba? E foi despertando o meu corpo. Acabei dando pro garoto. Dei muito. Mas não foi nada de exploração de filho do patrão. Nada disso. Eu dava por gosto mesmo. Com dezessete, dezoito anos, já tinha amizades com meninas do bairro. Comecei a matar aula pra ficar numas rodinhas de conversa com outras empregadas. Como morava num quartinho nos fundos da casa, comecei a fugir nos sábados à noite. Ia pra quadra da escola de samba. Eu era uma neguinha muito da bonitinha e chamava atenção. Aquilo me enchia de vaidade.
“Foi na quadra da Estácio que conheci meu primeiro marido. É engraçado, ele se chamava Geraldo. Sobrenome Dias. Ele brincava: ‘tá vendo, Geraldo e Geralda, fomos feitos um para o outro’. A gente ficou namorando durante quase um ano, tudo escondido. Quando eu estava para completar 19 anos, ele me chamou para morar com ele lá no Morro dos Prazeres, em Santa (Tereas). Geraldo, o Gê, como os amigos chamavam ele, tinha uns 30 anos e já tinha sido casado antes. Trabalhava de trocador numa linha de ônibus que fazia ponto final no Catumbi. Ele ganhava pouco, mas vivia sempre fazendo uns rolos, sempre descolando uma grana a mais. Nosso barraco era legal, de tijolo e teto de telhas. Tinha uma salinha, um quarto e um corredor onde ficava a cozinha e, nos fundos, separado por uma cortina, o banheiro. Nem dava para entrar o casal no banheiro: era só o vaso e um chuveiro em cima. De novo eu achei que o mundo tinha sorrido pra mim. Fui pro barraco fugida. Peguei as minhas roupinhas e nem me despedi.
“Um ano depois nasceu a Martinha. Geraldo queria que eu ficasse em casa e cuidasse do bebê. ‘Dinheiro é comigo’, ele falava. A gente não tinha quase nada, mas não faltava nada. Geraldo saia pro trabalho só às dez da manhã, porque pegava no ônibus ao meio-dia. Voltava oito, nove da noite. A gente comia duas vezes por dia. De manhã, café preto, pão com manteiga, ovo frito com banha de lata, sardinha. À noite, arroz, feijão com toucinho, um pedaço de frango ou carne. Durante o dia eu aguentava só no café. Depois do jantar, a gente sentava na porta do barraco, tomava uma branquinha (cachaça), que não faltava, e fumava Continental sem filtro. Agora, olhando pra trás, fico pensando que era um vidão. Tudo certo. Tudo no lugar. Pobre, mas tudo certo.
“Martinha já era uma menina de uns quatro anos quando engravidei do Tião. Minha vizinha, Dona Bruna, era tão feia e velha que o pessoal da comunidade chamava ela de ‘Dona Bruxa’. Mas era um coração de ouro. Me ajudou muito. Era lavadeira, o filho, pedreiro e encanador, construiu pra ela dois tanques de lavar nos fundos do barraco, com uma caixa de água de uns 500 litros. Dona Bruna passava o dia todo lavando pra fora. Tinha uma freguesia boa, mas não tava mais dando conta do recado. Me chamou pra ajudar e foi assim que virei lavadeira. Um dia, assim de repente, a velha bateu as botas. Dormiu tranquilamente e não acordou mais. Acho que Deus só faz isso com as pessoas boas. Morte calma e sem dor. Foi um acontecimento na comunidade, porque Dona Bruna era moradora antiga e todos gostavam dela. Eu fiquei com a freguesia, que ela tinha anotada num caderno com nomes e endereços, com rol de roupas e tudo mais.
“Quando eu estava grávida de uns seis meses, Geraldo sumiu. Saiu pro ônibus e não voltou. Fiquei feito louca, achando que ele tava com outra mulher. Rodei os bares, levando Martinha pela mão. Fui no ponto final da linha. Ninguém tinha visto Geraldo. Depois, delegacia de polícia, IML, hospitais. Nada. Uma semana depois, foi dado abandono de emprego pra ele. Mas eu consegui receber o salário do mês. Ninguém nunca mais teve notícias dele. Eu fiquei com o barraco e tudo que tinha dentro. Mas também fiquei com uma menina e um menino na barriga. A vida boa tinha sumido junto com Geraldo.
“Tião nasceu no Silvestre (Hospital Adventista Silvestre, no mesmo bairro). As vizinhas me levaram de táxi. Fui atendida na emergência, com a bolsa vazando, vomitando, um horror. Fiquei três dias internada. Fiz curso pra cuidar do bebê. Me deram roupinhas, cesta básica. O pessoal do Silvestre era fora de série. Uns santos. Martinha ficou na casa de uma vizinha que até hoje não sei quem é. Depois a comunidade me ajudou muito. Quem não conhece, nunca vai entender: pobre ajuda pobre. Tinha até um cara lá no morro, o Zeca, que sempre trazia coisas pras crianças. Lata de leite, balas, doces, pirulitos. Mas ele tava mesmo era de olho em mim. Ainda tava inteira, não era de jogar fora. Mas o Zeca era meio vagabundo, meio bandido. Não trabalhava, mas tinha moto, usava colar, pulseira, relógio bacana. Eu nem ligava pra isso, porque achava que ter um homem em casa era bom. Até porque me protegia da vagabundagem do morro. Mulher abandonada na favela é um sufoco.
“Zeca veio morar comigo no barraco. Nunca deixou faltar nada, mas ele enchia a cara, fumava maconha, andava metido com a bandidagem da Lapa. Tenho certeza que tinha outras mulheres entre as putas da Lapa e do Centro. Todo mundo dizia que o Zeca era cafetão e sustentado pela mulherada da vida. Sempre me aparecia uma ou outra vizinha fazendo fofoca. Acabei acreditando que meu segundo marido era traficante. Ganhava um dinheiro que ninguém sabia dizer de onde vinha. Eu já nem me importava mais com essa falação. Só queria saber de comida na mesa e nada mais. Não fazia perguntas e o Zeca não me incomodava.
Ele tinha encontrado uma família, tinha sido menino de rua, não tinha ninguém. E eu ia levando, sem me importar com o azar. Pelo menos o Zeca nunca trouxe problemas para casa, nem polícia, nem nada. Isso durou uns três ou quatro anos. E eu já tinha engravidado da Zilda. Daí, entreguei pra Deus. Seja o que Deus quiser. Comecei a frequentar a igreja evangélica do pé do morro, onde encontrei gente boa e fiz amizades. Comecei a frequentar também um movimento de moradores, pessoal metido em reivindicações. Fizeram uma creche na favela, com uma moças finas da zona sul, gente rica que ajudava os pobres. Nunca entendi, mas aceitei toda ajuda que vinha dos bacanas. Até no barraco eles foram uma vez. Pelo menos já não estava mais sozinha no mundo.
“Um dia, com a Zilda ainda de colo, com a Martinha já crescida e com o Tião que tinha virado um menino solto pela favela, o Zeca me chamou para uma conversa de responsa. Mamadão de cachaça, ou de maconha, sei lá, ele disse: ‘vou ter que tirar o time, minha nega’. Falou que se ficasse ia parar na cadeia. ‘Vou precisar sentar o pé pra não ter que sentar o dedo’. Foi bem assim que ele disse, mas não entendi o que queria dizer. Só entendi que ele estava com problemas com a lei. Ou com os bandidos, sei lá. Não sabia o que fazer, mas achei que ia ficar tudo certo, até porque ele falou que ia me mandar dinheiro.
Naquela noite a gente se despediu de marido e mulher. E nunca mais vi o Zeca. Também não fazia questão. Tinha amigos, gente que me respeitava. Estava conhecida na comunidade e não corria perigo de ficar sozinha com as crianças. Mesmo com esse clima, nenhum problema do Zeca chegou na minha porta. Com o meu trabalho de lavar para fora, ganhava o suficiente pra nós quatro. Já tinha até feito um puxadinho no barraco pra construir mais um quarto. Me lembro até que naquele ano teve uma chuva barra pesada no verão. Houve desabamentos no morro, mas a minha casa tava super firme e nada aconteceu.
“Uns dois meses depois que o Zeca foi embora, um garotinho bateu lá no barraco e me entregou um envelope. Tinha uma foto do malandro numa praia e um bolo de dinheiro. Não lembro quanto era, mas sei que era a maior quantidade de dinheiro que eu já tinha visto. Acho que dava pra sustentar a família por uns seis meses. Fiquei agradecida e aliviada, apesar de tudo. Só que isso me trouxe um problema novo: guardar aquela grana toda no barraco era muito perigoso. Separei o dinheiro em bolinhos e escondi entre as telhas. E ficava sem dormir pensando que podia chover e desbotar a tinta das notas. Eu nem sabia que dinheiro não desbota. Um dia eu dormi com um dos garotos do movimento comunitário, um daqueles bacanas da zona sul. Falei pra ele do lance do dinheiro, veja só que boba. Ele não deu a menor bola. Disse assim: ‘fé em Deus e pé na tábua’. Veja só que esse pessoal do movimento comunitário não tava nem aí pra dinheiro.
“Nesses dez anos (seguintes), minha vida foi essa. Tenho trabalho, posso manter as crianças, gente como o senhor me garante o que comer e ainda sobra um pouquinho pra outras coisas. Mas não consegui cuidar da vida dos meus filhos. A Martinha virou puta. Dava pros garotos do morro lá em casa mesmo, quando eu estava fora cuidando da freguesia. Cinco reais, imagina só! Nem sei quantos ela recebia por dia. Depois virou garota de programa, bonita que só ela. Fazia ponto na Atlântica (em Copacabana, em frente à boate Help, que já não existe mais) e quase não voltava pra casa. Parece que ela andava num apartamento de Copa, com outras garotas. De repente, não voltou mais. Andei procurando por ela e nunca consegui uma notícia. Quando penso nela, acho que deve ter arrumado um homem rico, talvez viva no estrangeiro com um alemão. Era uma garota tão bonita, que só pode ter tirado uma sorte grande. Não sei porque, mas o meu coração de mãe sente que ela se deu bem.
“Eu tinha que ganhar o pão de cada dia e largava as crianças em casa. Achava que a Martinha e as vizinhas iam tomar conta. Mas isso não acontecia. A Martinha já estava no serviço de puta e as vizinhas já tinham fechado os olhos. A Zilda, a menorzinha, com uns nove anos, devia passar o dia na creche e no movimento comunitário. Mas a menina fugia, pegava carona nos ônibus e ia lá para a Gomes Freire (rua da Lapa) pedir dinheiro nos sinais de trânsito e na frente de um supermercado. Um dia ela também não voltou e a polícia e o juizado (de menores) me falaram que ela pode ter sido sequestrada por uma família rica. Pelo menos isso, né? Não sei porque, mas acho que as minhas duas meninas tiveram sorte. É um sentimento de mãe. Alguma coisa no fundo do meu coração me diz que elas se deram bem. Como eu, que sai do sertão para ter a minha própria casa e a minha própria família no Rio de Janeiro.
“O único que ficou foi o Tião. Esse não saía da favela por nada nesse mundo. Tinha um monte de amigos, jogava bola no campinho. Cresceu livre no morro. Engraçado que o Tião me lembrava meus irmãos de Pernambuco. O mesmo jeito, o mesmo tipo assim físico. Magro, esperto, correndo atrás da bola. Sorridente. Um garoto legal. Quando tinha uns dez anos, começou a fazer uns serviços pro pessoal do movimento (do tráfico) na favela. Ia comprar cerveja pros caras, levava uns recados, entregava umas coisas. Depois virou olheiro, empinava pipas no alto das lajes. Depois virou fogueteiro, uma coisa que eu sempre achei meio engraçada. Soltava uns rojões de cima das casas dos vizinhos. Tinha até hora certa pra fazer isso. Uma coisa muito engraçada. E ele era super orgulhoso desse trabalho, até ganhava um bom dinheiro por isso. Nunca entendi. Tião andava sempre de bermuda colorida, descalço, sem camisa. Vinha para casa rindo, com dinheiro na mão. E dizia: ‘mãe, bota aí essa grana pra fazer uma janta legal’. Não sei porque, mas aquele menino vivia faminto. A maior alegria dele, depois do Flamengo, era comer. Sempre queria frango de padaria, ovos fritos, arroz, feijão, farofa, pão fresquinho. O negócio dele era comida.
“Tião, um dia, também não voltou. Fiquei três noites acordada esperando que ele voltasse. Parei de trabalhar. Tomei um litro inteiro de 51 (cachaça) com café, esperando uma notícia do meu menino. Perdi a conta do tempo. Não dormia e não comia. Só bebia feito uma desesperada. A comunidade não saia da minha porta, querendo ajudar. Nem prestava atenção ao que diziam. Pedi: ‘compra aí mais uma 51’. E eles compravam. A garota que trouxe a bebida tinha lágrimas nos olhos. Nem sabia que a gente era tão querida na comunidade. Passado um tempo, nem sei quanto, o pessoal do movimento (do tráfico) veio falar comigo. O cara de frente era o Tato (omito o nome que ela citou). Vinha daquele jeito do pessoal do movimento, com armas penduradas, colares, fuzis, pistolas. O Tato me disse: ‘Dona Geralda, passaram o Tião’. Ainda levei um tempinho para entender que meu menino tinha morrido. Em volta, os vizinhos estavam de cabeça baixa, pela morte do menino e por medo dos caras do tráfico. Tato me deu um pacote de dinheiro e disse que era para encontrar o corpo e dar uma última homenagem para Tião. Era menos do que o Zeca me deu. Mas dava para comprar o básico por uns seis meses.”
Vamos deixar essas palavras vazarem para a consciência de cada um. Vamos imaginar que a gente tenha compreensão suficiente para entender o peso e a gravidade deste depoimento. E vamos pensar a respeito de qual é o futuro que pretendemos construir.
Tião foi encontrado morto, com outros dois rapazes, no porta malas de um carro roubado e abandonado na zona portuária. Levou um tiro na nuca. A bala saiu pelo olho direito. Tião estava de pé quando foi baleado. O assassino era canhoto.
Lindo relato. Palavras escolhidas que tornam a dura história, num conto que deixa um tom de beleza pelo percurso. História igual a de tantos e tantas que estão em todos os lados que olhamos neste país. Dos anos 60 até hoje pouco mudou para estes sobreviventes. E ainda poderá piorar. Sinto uma profunda tristeza por todas estas mulheres que ainda conseguem sorrir.
*Annelise **Godoy* *Gestão, Cultura & Marketing* *55.11.999.747.000* *annegodoy2@gmail.com *
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